Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Destino das férias: hospital na praia

Depois de um tombo, suspeita de AVC isquêmico levou à internação da minha mãe

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Cynthia Araújo

Doutora em Direito, autora de 'A Vida Afinal: Conversas Difíceis Demais para se Ter em Voz Alta'

- Tá tudo bem com a vovó?

Não há pergunta mais difícil de responder do que o retórico "tudo bem". Quase nunca está tudo, TUDO, bem. "Tá bem na medida do possível, filha, mas eu vou ter que ficar aqui no hospital com ela". "Não, mamãe, por favor, vai comigo, vai mamãe, então eu vou ficar aqui com você e a vovó", as palavras saem entre soluços.

Sim, aconteceu de novo. Minha mãe teve mais um episódio do que quer que seja que acontece em seu cérebro.

Enquanto a enfermeira fazia perguntas em um inglês meio misturado com espanhol e holandês, eu pensava em quantas vezes contei fragmentos desta mesma história. Fiquei irritada com as palavras que já começavam a querer formar texto em minha cabeça, quase arrependida por cada um que já publiquei. "Você se expõe demais", dizem. Como se falando as coisas em voz alta, elas parecessem mais reais. Em conversas que devessem ser evitadas.

É o contrário de tudo em que acredito.

"Preciso ir buscar uns colírios pra ela, operou catarata recentemente, tem problema?" "Não, assim que terminar as perguntas você pode ir. É só apertar o botão que tem ao lado da porta e ela abre. Para voltar, você chama no interfone".

Fui. Com a cabeça em marte, ou no mercúrio retrógrado, avistei meu marido e minha filha do outro lado do vidro e apertei o primeiro botão que apareceu. Uma sirene começou a tocar.

Parece um conto, mas é crônica. E eu nem gosto de autoficção.

Meu marido arregalou os olhos. Demorei um pouco a entender o que tinha feito. Era só o que me faltava, será que iam me prender? Voltei correndo e tentei me comunicar com uma pessoa que falava ao telefone. Ela me pediu para esperar. Ninguém parecia se importar muito com a voz que anunciava a necessidade de evacuar o principal hospital do país.

Em uma tentativa desesperada de não perder a pouca sanidade que me restava, fiquei convencida de que não devia ser a primeira vez que acontecia, torcendo para que ninguém resolvesse fugir do lugar achando que estava pegando fogo. Informei o ocorrido às pessoas que passavam por mim. Nenhuma delas sabia direito como desligar aquilo e eu me resignei. Tinha algo verdadeiramente urgente para resolver.

Encontrei outra porta com um botão que não era vermelho e, mesmo com a autoestima abalada, apertei. Finalmente consegui chegar ao carrinho de bebê que minha filha comprida ainda usa. Fiquei ajoelhada em frente a ela, que me abraçou bem forte, enquanto eu derramava todas as lágrimas contidas nas últimas oito horas. Todo hospital deveria ter um cantinho para choro.

Nossa primeira separação estava prevista para o dia 16 de setembro. Já tinha tudo planejado. Mas, como diz o mantra que elegi para minha vida quando tinha 17 anos, "a vida é o que acontece com você enquanto você está ocupado fazendo outros planos". E foi assim que tentei explicar que não, não estava tudo bem.

O hospital ficava a 7 minutos de caminhada do hotel. Praticamente do outro lado da rua, uma sorte imensa dentro de todo aquele azar. Mas a despedida da minha filha doeu como se eu estivesse entrando num avião para o Japão, enquanto ela permanecia naquela pequena ilha do Caribe.

Ainda estava um pouco atordoada com a sirene que ninguém tinha desligado. Apareceu um segurança e eu disse "fui eu, desculpa". Ele sorriu dizendo que não me preocupasse. Quase o abracei. Havia enviado poucas mensagens contando o infortúnio, mas tive a impressão de que quase ninguém entendeu minha aflição. Ou então minhas amizades já se acostumaram com o enredo da minha vida familiar e acham que eu já me acostumei também. "Não se preocupe" foi uma das melhores coisas que ouvi no dia.

Nos últimos 12 anos, aprendemos que minha mãe não pode ser submetida a emoções muito fortes de determinados assuntos. Naturalmente, não é de grande ajuda tentar controlar os sentimentos alheios, mas, ainda assim, é alguma coisa. Dá uma falsa segurança que ajuda a seguir com certa normalidade. Mas dessa vez, não. Nenhuma emoção diferente, tudo aconteceu sem mais nem menos. Estava "tudo bem" e de repente não estava mais.

Começou com uma castanha. Não a de comer, a castanha na linguagem da minha filha de três anos, que é aquela sensação de dormência de um membro quando passamos muito tempo em cima dele. "Castanha, mamãe". "Ah sim, filha, cãibra". "Isso, castanha". E depois a queda, o susto, a dúvida.

Praia em Curaçao, com uma ponte de pedestres por cima
Ponte no hotel onde minha mãe caiu - Arquivo pessoal

Tudo normal na tomografia. "Normal, não, né, normal pro histórico dela". Esse histórico estranho, de coisas graves sem diagnóstico, com recuperações inexplicáveis e o cálculo do medo sempre pairando sobre a nossa cabeça como um aneurisma inexistente prestes a explodir.

MAS. Sempre tem o mas. Não há sangramentos novos, mas pode ter sido uma pequena isquemia que o exame não identifica. A indicação é internar com uma dose de ataque desse remédio aqui, isso, aquele mesmo remédio que a sua mãe não pode tomar, em razão dos riscos de hemorragia inerentes ao seu quadro. A suspeita da vez era nova. Angiopatia amiloide cerebral. Igualmente ruim e pouco tratável como todas as outras.

O neurologista aparece no dia seguinte. "É uma situação peculiar essa da sua mãe". Não me diga.

Por mais boa vontade e competência que tenham os médicos, é difícil acreditar nos achados dentro da cabeça da minha mãe. "Estou inclinado a pedir uma ressonância, mas só conseguiremos fazer na quinta".

Não sei o que a abala mais, apesar de sua resiliência tão atípica quanto tudo que passou até aqui, se é a frustração de expectativas de uma viagem em família ou a falta de perspectiva de saída do hospital. Não, na verdade, eu sei sim. O que mais a afeta é a dependência. É de repente não ser capaz de andar sozinha. A cada susto, minha mãe reage com ainda mais pulso de viver. Ela tem medo da morte, claro. Mas ela tem ainda mais medo do que deixa de viver. E isso sempre traz urgência.

- Eu tô bem. Vai lá ficar com a Beatriz. Vai na praia um pouquinho.

A minha filha. A praia. Levar a minha filha para a praia. Penso no sorvete. De quando escrevi que, quando minha mãe adoeceu há doze anos e não sabíamos se ela (sobre)viveria, eu observava, incrédula, como as pessoas pareciam felizes nas ruas, rindo, conversando, fazendo coisas inaceitáveis como tomar um sorvete. Enquanto eu queria gritar para que parassem e escutassem a minha dor.

Mas minha mãe não concorda, porque, para ela, como escreveu Noemi Jaffe, em "Lili: novela de um luto", "as coisas revestidas de morte são também as coisas revestidas de vida".

Percebo que é a primeira vez que sou filha e mãe ao mesmo tempo. Não posso ser apenas a pessoa que larga tudo para ficar no hospital. Mas posso ir para a praia?

Chego ao hotel e Beatriz me recebe com a alegria descontraída que só uma criança pode ter em um momento assim. "Como tá a vovó?" sai tão leve quanto "eu fui no parque aquáticulo".

Passamos algumas horas juntas e, ao fim do dia, sugiro que ela vá ao hospital ver a avó. Antes que alguém se pergunte, já adianto que, naquele hospital vazio e tranquilo, vi diversas crianças visitando suas pessoas. Minha mãe se ilumina com a presença da neta, que chega e pergunta se pode deitar um pouquinho em sua "cama". Por alguns instantes, não existe qualquer medo de futuro ali. É só o presente vivido por duas pessoas que se amam e estão construindo suas memórias apesar de tudo que pode vir em seguida. Ou exatamente em razão de tudo que pode vir em seguida.

Acho que, se eu sobreviver à minha mãe, nada do que tenho dito servirá para mim, aconteça hoje ou em três décadas. Não acalmará meu coração, não apaziguará o meu sofrimento. A angústia inicial do luto, a dúvida sobre se um dia passa, a dor em seu estado mais puro, que quase podemos tocar: anos e anos de internalização do morrer como parte da vida não farão qualquer diferença sobre elas. Tenho isso tão certo quanto que não me ressentirei dos momentos que não vivi pensando naquilo que ainda poderia viver. Desde que a morte se apresentou para nós de forma concreta, em 2012, nossa relação com a vida mudou. Muitos dos encontros que minha mãe e eu tivemos, as viagens que fizemos, discussões evitadas ou encerradas, manifestações de carinho, decisões, talvez só tenham acontecido, porque sabíamos que a morte continuava ali, na curva da estrada; porque não estávamos e não estamos dispostas a viver na crença de que o melhor da vida ainda está por vir ou de que sempre haverá novas chances, novos encontros.

Trecho do livro "a vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta" (ed. Paraquedas)

Na quarta, tivemos uma boa notícia logo cedo. A ressonância seria realizada naquele dia. Fui com meu marido e minha filha comprar uma bengala, orientação do fisioterapeuta do hospital, já antecipando o grande momento feliz em que sairíamos do hospital. Nem tão grande, nem tão feliz, a depender do resultado, claro. Mas, ainda assim, naquele momento, a alta era o que minha mãe mais desejava.

Não gosto muito de comemorar boas notícias. Lembro que, no ano novo de 2019, pensei em como me sentia plena e realizada. "E assim trouxe a pandemia", brinco. Felicidade é pra gente apreciar em retrospectiva, e não para ser constatada instantes antes de se dissipar, frágil como uma bolha de sabão. E é assim que, sempre que me perguntam sobre a minha mãe, apresento a realidade com suas ressalvas.

Na volta, naturalmente, a decepção: ressonância cancelada, porque o aparelho parou de funcionar, sem previsão de retorno. "Toma aqui, vovó. Eu trouxe esse anel para você usar para sempre". Alheia aos rostos cansados, Beatriz devolveu a tranquilidade necessária para mais uma noite.

No dia seguinte, nada de um aparelho em que pudéssemos realizar o exame. A alta era contraindicada, mas minha mãe ia ficando mais ansiosa pela espera. O medo de emoções que causassem algo ainda pior nos obrigava a ir embora. Ela mesma disse cantando para o médico holandês, de ascendência surinamesa: "I don’t want to stay here, I want to go back to…". O neurologista que a acompanha no Brasil havia nos tranquilizado e, no momento em que colocava o anel mágico que a neta levara no dia anterior, a porta do quarto se abriu. Uma enfermeira trazia o documento para sua saída naquele dia, início da tarde.

Foto de cima de uma mulher de vestido branco e lenço azul, que mostra suas mãos e os braços com acesso na veia e pulseira de hospital, sem imagem do rosto
Minha mãe esperando a alta do hospital, após três dias, com seu anel da sorte - Arquivo pessoal

Embora estivesse evitando que meu perfil de pesquisadora de bioética ocupasse o espaço que deveria ser apenas de filha da minha mãe, atuando em seus interesses, não pude deixar de observar a postura do médico que nos assistiu. "Eu estou aqui para vocês, e não o contrário. Se seu desejo é sair, farei o possível para que isso aconteça da melhor forma". Ele fez um detalhado relatório e entregou a prescrição dos medicamentos que deviam ser continuados. Santo seguro de viagem (em hipótese alguma, vá para outro país sem um). Aliás, que equipe incrível de saúde tivemos a sorte de encontrar no Curaçao Medical Center. Espero que, de alguma forma, este texto chegue até lá.

Mesmo andando com dificuldade, minha mãe voltou ao mar, apoiada em uma bengalinha que minha filha chamou de Davi. "Nem acredito que consegui vir aqui. Achei que ia embora sem entrar nessa água. Estou feliz, estou muito feliz".

Feliz. Uma palavra que, dadas as circunstâncias, parece nem fazer sentido. Mas para minha mãe faz.

Ainda não sabemos o que aconteceu. Tivemos que nos acostumar, ao longo dos anos, à falta de respostas, de previsibilidade, de alguma explicação da Medicina. Não temos controle sobre o que acontece. Nenhuma pessoa tem, é verdade. Mas nós tivemos que aprender a lidar com um risco especialmente aumentado para situações graves. E temos tentado viver intensamente, concebendo as possibilidades com maior transparência, por mais que isso doa. O paradoxo é que, quanto melhor se vive, mais se quer viver. E aí, o medo do fim é tão concreto que quase podemos tocar.

"Aproveita essa fase, porque passa muito rápido", escuto minha mãe dizer mais uma vez ao observar a neta brincando.

Eu sei, mãe. Estou aproveitando. Mas qual fase não passa rápido, afinal? A vida passa mesmo muito rápido.

Mãos de pessoas brancas sobrepostas
Minha mão sobre a mão da minha mãe - Arquivo pessoal

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