Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente maternidade

A maternidade é uma experiência assombrada pela morte

Lili: novela de um luto, e o absurdo da ausência

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SAO PAULO, SP, BRASIL, 07 - 11 - 2012, 10:30. A escritora Noemi Jaffe, 50 ( esquerda ), ao lado de sua mae, Lili Jaffe, 86 e sua filha, Leda Cartum, 23. Folhapress

Pode parecer um pouco estranho –e provavelmente é –, mas passei boa parte do mês de abril pensando que deveria publicar alguma homenagem para o Dia das Mães aqui. Embora nada represente mais a vida do que a maternidade, é ela também uma das experiências mais assombradas pela morte. Aprendemos desde cedo que poucas dores são comparáveis à perda de um filho – e que as mães, eternas, não deveriam morrer.

Desde que escutei pela primeira vez a música "Todo homem", do Zeca Veloso, a frase "eu sou cordão umbilical, pra mim nunca tá bom" reverbera em algum lugar muito profundo do meu ser, talvez seja a alma.

Não consegui escrever um texto a tempo do Dia das Mães, porque estava muito ocupada, eu mesma, sendo uma. Minha filha está possivelmente na fase mais pra mim nunca tá bom da sua vida e temos sido colo permanente uma para a outra.

Muitas vezes olhei para o livro "Lili: novela de um luto", de Noemi Jaffe, esperando na biblioteca por algumas horas do meu dia. Sabia que era ele que embalaria minhas palavras sobre morte e mãe. Morte da mãe.

O dia finalmente chegou e, afinal, maio ainda está aí. Não pretendo resenhar o luto de Noemi por sua Lili. O que posso dizer é que cada frase é um mundo inteiro de sentimentos, diferentemente sentidos por cada filho, filha, com toda certeza. Ao fim da leitura, eu, que já penso muito nisso, reconheci a sorte que tenho por poder conhecer ainda tanto da vida da minha Ana Aurora, sentir seu cheiro, provar sua comida, sua presença. Observar, admirada, a minha mãe se tornar avó da minha filha.

"As coisas revestidas de morte são também as coisas revestidas de vida" foi uma das passagens com que mais me identifiquei.

Noemi narra os momentos que se seguiram à morte da mãe Lili, em decorrência de uma causa banal –se é que aquilo que tira a vida de nosso primeiro, e tantas vezes maior amor, pode ser descrito como banal. Embora não seja uma narrativa de guerra, o passado da mãe, sobrevivente do holocausto, paira no ar e dimensiona cada parágrafo.

Na capa: "Ao trazer a morte da mãe para o centro deste relato, Noemi Jaffe, uma das principais vozes da literatura brasileira, expõe de forma brutal as feridas do luto e o que é possível fazer para vivê-lo". Não sei se concordo. Não acho que a obra seja uma receita de como viver o luto. Na verdade, o que vejo ali é como a imposição da ausência é brutal e derruba todos os frágeis muros mentais de preparação para esse momento, que construímos ao longo de anos. Muitas vezes, ao longo de uma vida inteira. Ninguém está verdadeiramente pronto para o absurdo que é essa "ausência completa", como diz Noemi.

Ela relata que a morte da sua mãe foi por causa de uma infecção lenta e insidiosa que começou com uma bolha num dedo do pé. Como pode alguém aceitar que a morte, esse fenômeno que encerra a vida, não venha de um nome temeroso e definitivo, como um câncer avançado?

Noemi diz que sua mãe, essa mulher imortal e heroica, deveria ter morrido de um jeito que abalasse a estrutura da cidade, que fizesse o céu cair e a terra tremer. A morte das mães devia fazer o mundo parar.

Mas ele não para. A vida continua, as vidas continuam, até a nossa, é o que percebo nas palavras da autora.

Quando minha mãe adoeceu e não sabíamos se ela (sobre)viveria, lembro de observar, incrédula, como as pessoas pareciam felizes nas ruas, rindo, conversando, fazendo coisas inaceitáveis como tomar um sorvete. Eu queria gritar para que parassem e escutassem a minha dor.

No lugar da comoção sem precedentes que deveria suceder a morte de Lili, sua filha recebia olhares de alívio quando informava que sua mãe tinha vivido até os 93.

A muita idade deve diminuir, ou ao menos atenuar, a dor, é verdade. Há razão nisso. A morte de uma pessoa velha é menos chocante do que a de uma pessoa nova, diz Noemi.

O livro "Como morremos", do médico americano Sherwin Nuland, demonstra de forma muito didática que a morte é o processo natural e final do envelhecimento. Somos muito mais impactados pelo fim da vida de crianças do que de pessoas muito idosas e não há grande surpresa nisso. Mas, como me disse recentemente um amigo que perdeu o pai, também nonagenário, "não importa o que seja para o mundo: para mim, morreu o meu pai". Para Noemi, morreu a sua mãe. E que ela já estivesse bem velha não trouxe qualquer conforto.

O fato de que sua morte era de certa forma esperada, antecipada por uma doença, também não. Ninguém está completamente vivo, a morte está o tempo todo dentro de nós, e não é porque uma pessoa está doente, ou até muito doente, ou à beira da morte, que ela está menos viva do que qualquer um de nós, lembra a autora.

Penso, mais uma vez, na minha mãe, que depois de três AVCs hemorrágicos, segue sobrevivendo a tantos que pareciam muito mais distantes do fim do que ela. Noemi tem razão. Não existe todo-vivo ou meio-vivo. A morte está dentro de cada um de nós, mas ou se é vivo-inteiro ou se é morto-inteiro.

Entre uma coisa e outra, o tempo é uma coisa trágica: ele acontece (p. 74). O tempo, que é tão inventivo e parece contínuo, mas não é. Ele acontece e acaba. De repente, tudo que estava bem não está mais. Talvez nem estivesse tão bem assim, afinal.

E então, a vida continua, claro, mas agora com a morte, com a morte dela, e não apesar ou além disso.

"Mantenha este espaço vazio", queria poder falar Noemi sobre os espaços que sua mãe houvera ocupado no mundo, consigo e com suas coisas. Esse vazio é, como interpreto, a morte dentro da vida.

"Por que Deus permite que as mães vão-se embora? Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não apaga", disse Drummond.

Esse não se apagar que Noemi nos permite observar tão profundamente, um que ainda não conheço e que talvez nem chegue a conhecer, ajuda a apurar os sentidos – a perceber os cheiros, os sabores, o jeito de falar e se expressar, o riso. "Lili, novela de um luto" é certamente uma obra que abraça os enlutados. Mas o interior do seu luto promete, talvez, reflexão mais intensa ainda a quem não perdeu ou se perdeu de ninguém.

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