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Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Boneco enforcado, samba e macacos: a perseguição dos 'ultras' espanhóis a Vini Jr

Racismo e xenofobia não são novidade na vida do jogador na Espanha

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Dizem que as primeiras torcidas organizadas no futebol surgiram no Brasil, onde se registrou pela primeira vez uso da expressão lá por 1939.

Isso foi bem antes da popularização do termo "ultra", que esta semana voltou -- infelizmente -- aos #trendytopics, devido ao incidente racista com o brasileiro Vini Jr, jogador do Real Madrid, no último domingo (22).

A palavra nasceu na Itália pós-Mussolini dos anos 1960-70 e se espalhou rapidamente pelo mundo para designar tanto os torcedores fanáticos quanto seus grupos, muitos dos quais, ao longo da história, foram/estão associados a valores fascistas, conservadores e/ou violentos (sendo que o "e/ou" é um sopro besta de atenuação vocabular).

Ainda hoje, tanto no imaginário popular quanto na mídia, o termo "ultra" é comumente associado a radicalismo, hooliganismo, porrada, violência.

Ao mesmo tempo, porém, é cada vez mais empregado em referência a grupos antifascistas.

Vinicius Júnior, jogador do Real Madrid, cumprimenta a audiência antes da partida disputada com o Rayo Vallecano de Madrid em 24 de maio de 2023 - Javier Soriano / AFP)

Por exemplo, no Brasil, temos a pioneira antifascista Ultras Resistência Coral, do Ferroviário.

Na Espanha, os ultras anarquistas antifascistas do "Vallecas", torcida organizada do Rayo Vallecano, time de Madri associado ao bairro "obrero" homônimo, se autodefinem como "contra o racismo, a repressão e o futebol-negócio" -- proposta parecida à dos ultras comunistas do Livorno, na Itália.

E, por sua vez, completamente contrária é a pegada dos torcedores do Irriducibili, do Lazio, francos seguidores do fascismo, que fizeram um "rebranding" em 2019 depois do assassinato de um ex-capo e passaram a se chamar "Ultras Lazio".

Ou os Boixos Nois, do Barça, "hinchas" (torcedores) ultras proibidos de entrar nos estádios desde 2003, com suas suásticas e skinheads.

***

Aqui na Espanha, as agressões ao jogador brasileiro Vini Jr, do Real Madrid, na partida do último domingo em Valência, partiram da ala "ultra" da torcida do time da casa, o Valencia.

Os primeiros identificados por uma investigação preliminar são jovens brancos espanhóis sem antecedentes criminais entre 18 e 21 anos -- idade similar à do jogador, de apenas 22 anos.

"Não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga", afirmou Vini em suas redes sociais logo depois do incidente. "A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam. Lamento muito".

Há poucos meses, por exemplo, Vini também foi alvo de outros ultras, estes, do Frente Atlético, associados ao Atlético de Madri.

Essa radical torcida organizada (ou "hinchada", como se diz em castelhano) está indelevelmente conectada a um dos maiores episódios de violência ultra da história do futebol espanhol, conhecido como "caso Jimmy".

Em 30 de novembro de 2014, Francisco Javier Romero, conhecido como "Jimmy", faleceu durante um enfrentamento entre os ultras de seu grupo, ligados ao Deportivo de La Coruña, e os do Atlético.

Oito anos depois, em dezembro de 2022, o veredicto: multas entre 300 e 1.350 euros para 75 "ultras", mas ninguém responsabilizado pelo assassinato. LaLiga pediu a reabertura do caso.

Em janeiro de 2023, os radicais do Atlético -- esses mesmos, de novo e operantes -- penduraram um boneco enforcado de Vini Jr, vestido com a camiseta do jogador, numa ponte em Madri, acompanhado de um cartaz onde se dizia "Madri odeia o Real".

O incidente resultou em quatro acusados de delitos de ódio. Todos, entre 19 e 24 anos.

O Frente Atlético tem uma divisão conhecida como "grupo de los pelaos", em alusão aos cabelos raspados, e está historicamente ligado ao movimento nazista Blood and Honour. Mais não digo.

Vini, na realidade, vem sendo agredido desde que pisou em solo espanhol. A Liga espanhola apresentou pelo menos nove denúncias por agressões racistas contra Vini nos últimos campeonatos, e a maioria foi arquivada ou até agora não deu em absolutamente nada.

E isso tudo, como eu disse antes, apesar de estarmos falando de jogos milionários, exaustivamente televisionados e com milhares de potenciais testemunhas.

Ou, talvez, por isso mesmo.

Outro exemplo recente? Em setembro de 2022, Vini teve que vir a público defender-se por conta de um imbecil chamado Josep Pedrerol, apresentador de um programa de tevê local de debates esportivos e gosto duvidoso chamado "El chiringuito de jugones".

Em determinado momento de um dos "debates", Pedrerol, conhecido por seu caráter conflitivo, diz: "Se [Vinicius] quer bailar samba, que vá ao Brasil; aqui o que tem que fazer é respeitar seus companheiros de profissão (...) y dejar de hacer el mono".

Dejar de hacer el mono: deixar de bancar o macaco. Aqui na Espanha, também equivalente a dizer "deixar de bancar o tonto". Mas pegou mal, muito mal.

A resposta pública de Vini na época, com cara de texto copy oficial, mas muito contundente: "Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho nos olhos, haverá guerra: tenho essa frase tatuada no corpo e tenho atitude na minha vida que transforma essa filosofia em prática".

"Dizem que felicidade incomoda. A felicidade de um preto, brasileiro, vitorioso na Europa, incomoda muito mais. Mas a minha vontade de vencer, meu sorriso, meu brilho nos olhos são muito maiores do que isso. Fui vítima de xenofobia e racismo em uma só declaração. Mas nada disso começou ontem", sublinhou.

Mais verdades sejam ditas: mesmo o Real Madrid, time de Vini, ganhou muito poder e popularidade durante a ditadura franquista.

No entanto, sua torcida organizada, claro, fica piano pianinho quando um jogador de pele azulverdeamarelanegra está a seu "serviço". Ser parte integrante do circo não é ser protegido por ele.

Na partida citada acima entre o Atlético e o Real Madrid em janeiro, no dia seguinte ao tal boneco na ponte, Vini elegantemente respondeu com um gol e uma mensagem em suas redes: "Vini ama Madrid". Sim, Vini. E ame-se a si mesmo.

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