Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

É preciso flexibilizar a flexibilização

Precisamos de um entendimento de liberdade e flexibilidade que seja pautado pela dignidade

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Tulio Custódio

é doutor em sociologia pela USP, sócio e curador de conhecimento da Inesplorato, pesquisador afiliado do Alameda Institute e membro do conselho consultivo do Pacto Global (ONU) no movimento Salário Digno e Raça é Prioridade

Atualmente temos falado bastante sobre elementos que envolvem a flexibilização do trabalho. Seja por seus reflexos nos lados mais perigosos, como a precarização, seja em seu reflexo conectado aos ventos do tempo após a pandemia da Covid-19, como a questão em torno do trabalho híbrido –tema presente nos debates de redes sociais, reportagens em jornais ou como objeto central na articulação de políticas públicas e reformas legislativas.

De fato, tudo que atravessa o universo do trabalho nos últimos 50 anos pelo menos, é passível de ser tocado e discutido à luz da flexibilização, que vem associada fortemente por discursos a favor da liberdade, autonomia, autodeterminação, entre outros.

A chave mestra de qualquer debate que envolve trabalho tem sido liberdade e autonomia, mas, como diversos estudos e pesquisas têm demonstrado, aquilo que temos chamado de liberdade tem sido mais elemento de "subordinação" e degradação da vida.

Tulio Custódio é doutor em sociologia pela USP, sócio e curador de conhecimento da Inesplorato, pesquisador afiliado do Alameda Institute e membro do conselho consultivo do Pacto Global (ONU) no movimento Salário Digno e Raça é Prioridade
Tulio Custódio é doutor em sociologia pela USP, sócio e curador de conhecimento da Inesplorato, pesquisador afiliado do Alameda Institute e membro do conselho consultivo do Pacto Global (ONU) no movimento Salário Digno e Raça é Prioridade - divulgação

A começar por questões que envolvem flexibilização do tempo e do espaço. A desregulamentação de horários rígidos, ou a ampliação (bastante fortalecida, ao menos para trabalhos de escritório) da possibilidade de trabalhar remotamente, envolvem também o interesse de muitos dos trabalhadores e trabalhadoras em não ter mais um dia marcado pela rigidez do "bater-ponto", ou ainda com certa autonomia de organizar sua agenda da maneira que melhor convier.

Para alguns perfis, especialmente mulheres (em grande parte responsabilizadas pelo trabalho de cuidado da família e parentes) e pessoas que moram longe dos centros, a flexibilidade poderia, idealmente, significar maior qualidade de tempo, dado que é possível conciliar atividades de trabalho com outras da vida, bem como evitar o tempo despendido nos trânsitos caóticos das grandes cidades (tempo e dinheiro, vale mencionar).

Ainda, a flexibilidade também tem sido pauta de discussões sobre "não-especialização" ou melhor, da possibilidade de desenvolver e aprender novas atividades no processo do trabalho.

Essa discussão desloca –não ignora, mas coloca em outro patamar de importância– a questão da formação (técnica e acadêmica) para necessidade do aprendizado contínuo, ou ainda para vagas de trabalho multifuncionais, ou seja, a descrição do que se faz, no dia-a-dia, vai muito além do título que o cargo preenche.

Tanto na questão do tempo, quanto das tarefas, o que os dados sobre o mundo do trabalho vêm demonstrando é um grande armadilha na qual a flexibilização tende, no fim, a atender bem menos aos interesses dos trabalhadores.

Pode haver mais tempo? Pode. Pode haver mais possibilidades de não ter que se deslocar tanto? Pode. Mas junto com isso temos visto processos de intensificação do trabalho (tem-se que fazer mais e mais), aceleração do ritmo (tem-se que fazer em menos tempo) e até certa padronização (tem-se que seguir modelos já pré-configurados, para garantir que não haja desvios de rota).

Tudo isso, ainda que bastante complexo, em nome da liberdade e autonomia acaba, para muitas pessoas, soando como um "bem, é assim que tem que ser".

Por essa razão, para escapar das armadilhas que enredam a discussão, mas não deixar de se falar sobre aquilo que importa (sim: a flexibilização importa; as pessoas querem uma vida com seu tempo mais disponível, dedicada a atividades que não sejam apenas de trabalho, tempo para família e lazer), proponho que consideremos como chave mestra a palavra dignidade.

Dignidade é uma maneira de vermos ou até mudarmos em que medida a flexibilidade acrescenta em nossas vidas. Temos mais tempo, mas isso significa que ele é realmente livre para fazermos o que nos traz alegria ou que está ocupado por mais trabalho?

A renda que temos, dessa flexibilidade, é realmente necessária para vivermos com aquilo que precisamos, ou todo mês temos que fazer uma "dança-dos-boletos" para saber o que queremos e podemos pagar, sem saber como será o dia de amanhã.

A ideia de dignidade é basicamente a capacidade de enxergamos, em médio e longo prazo, a sustentabilidade do sistema. Flexibilizar deveria ser melhorar, desenvolver, e não "envergar", ou mesmo a palavra da moda "resiliência" – que na melhor e na pior das hipóteses envolve suportar a dor e sofrimento dos processos que flexibilização, hoje, tem representado.

Se a flexibilização é um imperativo para melhor condição de viver, trabalhar, criar e inovar, então que seja fundamentada pela dignidade. Afinal, não há prosperidade sem dignidade.

* O presente artigo contou com a edição da jornalista Giulia M. Ebohon

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Tulio Custódio foi "Aquarius/ Let the Sunshine in", de The 5th Dimension.

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