Por muitos séculos uma parcela grande da sociedade se acostumou com condições de vida hoje degradantes e inaceitáveis aos nossos olhos. Condições que eram normalizadas na época do lançamento de Anna Karenina, de Liev Tolstói, em 1877, obra épica do realismo literário, de onde se tirou a passagem que inicia esse texto. Felizmente, na segunda metade do século 20, a luta por direitos civis rompeu o triste cenário de resignação com as injustiças. Rompeu, mas não superou.
Essa é uma conversa sobre justiça social, que toma emprestado o título traduzido de uma das obras-primas da literatura dos EUA, e que rendeu o prêmio Pulitzer ao livro escrito por Harper Lee, em 1960. É dito de forma afirmativa, como se de fato a questão da justiça fosse disponível para todos, mesmo numa sociedade em que, naquela época, segregava e que, nos tempos presentes, com outra roupagem, segrega ou melhor (pior), discrimina e é, sobretudo, desigual. Nos EUA, no Brasil e em boa parte do mundo.
Na literatura associada à justiça social conceituam-se as desigualdades a partir de três lentes: desigualdade de oportunidades (acesso à educação, saúde e etc.), de resultados (renda) e de tratamento (discriminação racial, gênero, orientação sexual, religião e etc.).
No mundo real o sol não é para todos, ao menos não no sentido conotativo. Um texto esclarecedor sobre esse tema é o último livro de Antony Atkinson, "Desigualdade". O que pode ser feito? Em que o primeiro passo é pontuado como a necessidade de reconhecer que há o problema.
Amartya Sen, em seu livro "Desenvolvimento como Liberdade" nos ajuda a compreender esse elo que une a dimensão da liberdade (ou falta de) com a noção de justiça social. Trata-se do desenvolvimento humano o qual pressupõe o acesso a oportunidades básicas, como educação e saúde. Sen procura explorar os motivos pelos quais muitos são excluídos da sociedade, incluindo a própria possibilidade de convivência com os demais pares, e das condições de escolher com liberdade e autonomia seu futuro.
Transitando para a música, também vale a pena revisitar as obras do passado. Quase 60 anos depois, o clamor por liberdade que dá nome a um dos melhores discos de jazz de todos os tempos ainda ecoa forte e retumbante. "Free for All" (não confunda com o adjetivo "Free-for-all") é a música que dá nome ao álbum de Art Blakey e os Jazz Messengers, lançado em 1964.
O contexto da época, nos EUA, era o de forte luta pelos direitos civis da população negra que era impedida de coisas básicas, como se sentar em assentos de ônibus com brancos, frequentar os mesmos banheiros e até ingressar em universidades. A segregação era implacável naquela sociedade e provocava enorme exclusão dos negros ao acesso de diretos básicos de cidadania.
Free for all é um grito para ser livre para poder fazer qualquer coisa. Mas, como é amplamente reconhecido, nem todos são livres. Muitos ainda não têm acesso ao mínimo de dignidade, como acesso a saneamento básico, à saúde pública, à educação, ou mesmo têm insuficiência de renda que impede um deslocamento para procurar emprego.
No caso do mercado de trabalho, ainda há um grande caminho a ser percorrido na luta contra a desigualdade e a discriminação racial. A questão do gênero no mercado de trabalho, objeto de pesquisa da recém-laureada com o Nobel de Economia, Claudia Goldin, também é um dos exemplos de como existe desigualdade de resultados (renda) em função da desigualdade de tratamento. Desigualdades racial e de gênero são impeditivos para a liberdade para fazer qualquer coisa.
O antídoto para a solução dessas múltiplas desigualdades vem das políticas públicas inclusivas e reparatórias. Revisitar o passado e olhar para os problemas do presente pressupõe um esforço que não é trivial para muitos: admitir que fomos injustos por muito tempo e essa injustiça permeia e ainda ecoa sobre a sociedade contemporânea.
Talvez isso proporcione um cenário que rompa a aceitação do convívio com a injustiça bem perto de nós. Da resignação às lutas por direitos, na literatura ou na música, a mensagem por Justiça é que todos possam ser livres. E que o sol é para todos. No denotativo e no conotativo.
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O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha de S.Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por João Felippe foi "Free for All", interpretada por Art Blakey & the Jazz Messengers.
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