Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Há como reverter os efeitos adversos da discriminação racial sobre a aprendizagem

Políticas interseccionais podem proteger estudantes dos impactos do racismo sobre processos biológicos e cognitivos

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Julia Callegari

É doutoranda em desenvolvimento humano na Universidade de Northwestern (EUA), tem mestrado em políticas públicas por Harvard e é especialista em economia pela USP

As experiências de discriminação racial, frequentes na sociedade brasileira desde a primeira infância, impactam diretamente o potencial de aprendizagem de nossos estudantes. Mas a educação tem o poder de mitigar os efeitos perversos do racismo sobre as crianças e os jovens, protegendo suas trajetórias de desenvolvimento. Como isso é possível, em meio ao racismo estrutural que marca a história do nosso país?

Julia é uma mulher branca de cabelos escuros e lisos, franja e olhos escuros. Ela usa óculos de grau com armação escura e uma blusa listrada.
É doutoranda em desenvolvimento humano na Universidade de Northwestern (EUA). Tem mestrado em políticas públicas por Harvard e é especialista em economia pela USP - Divulgação

Estudos realizados pelo laboratório de pesquisa COAST da Universidade de Northwestern (EUA), com o qual colaboro, mostram que o estresse associado a experiências de injustiça étnico-racial, juntamente com a ansiedade resultante do desejo de performar bem para superar as baixas expectativas da sociedade sobre a população negra, têm efeitos biológicos e psicológicos. Entre esses se destacam a desregulação de cortisol e a piora do padrão de sono, encontrados com mais frequência e intensidade entre pessoas negras em comparação a brancas. Tais alterações possuem implicações diretas e negativas sobre processos cognitivos, como prejuízo da atenção, memória, motivação e bem-estar - fatores centrais no processo de aprendizagem.

O dano é ainda mais intenso para os adolescentes. Isso se deve, primeiro, à alta plasticidade cerebral que marca essa faixa etária. E segundo, ao fato de que a adolescência é uma fase de intensa exploração e formação identitária anterior ao desenvolvimento pleno de mecanismos psicológicos associados à confiança e capacidade de se preservar diante de situações de discriminação.

Contudo, essa cadeia de impactos danosos não é inevitável. Há análises desenvolvidas no contexto americano, como a de Dorainne Levy (Universidade de Northwestern) de 2016, indicando que fatores associados a uma educação de qualidade voltada para equidade étnico-racial são capazes de reduzir os efeitos nocivos da discriminação sobre processos biológicos, psicológicos e cognitivos, promovendo melhorias em autoestima, saúde mental e desempenho acadêmico.

Alguns desses fatores incluem: currículos e projetos pedagógicos que valorizam a história e cultura de grupos étnico-raciais socialmente marginalizados; aulas que evidenciam e discutem sistemas de poder reprodutores de desigualdades, estimulando a consciência crítica e a participação cidadã dos alunos na transformação dessas estruturas sociais; e formação de professores que os preparem para superar e desafiar perspectivas de déficit em relação a estudantes vulneráveis.

É preciso, ainda, atentar-se para a intensificação de vulnerabilidades que se observa no contexto da interação dos diferentes marcadores sociais que formam um indivíduo. Na esteira do pensamento interseccional, desenvolvido e defendido desde a década de 1980 por feministas negras como Kimberlé Crenshaw nos EUA e Lélia Gonzales no Brasil, devemos incentivar nossos educadores a reconhecer que o desenvolvimento de crianças e jovens se dá a partir da interação entre diversas categorias sociais mutuamente constituídas, como as raciais, regionais, socioeconômicas e de gênero.

Um exemplo disso é o estudo de 2008 de Tabbye Chavous (Universidade de Michigan, nos EUA) e outros pesquisadores, cujo resultado revelou que meninas e meninos negros tendem a responder de maneira diferente a experiências de discriminação racial na escola: enquanto os meninos costumam demonstrar um comportamento de desengajamento acadêmico como estratégia de autopreservação, as meninas tendem a apresentar maior nível de estresse e ansiedade, o que também pode levar a dificuldades de aprendizagem. Essa diferença relaciona-se às distintas formas como ambos são socializados. Meninas geralmente sofrem mais pressão, familiar e da sociedade, por validação e aprovação de terceiros, ao passo que meninos normalmente recebem mais alertas sobre as barreiras e violências raciais a que estão suscetíveis.

Assim, é fundamental que projetos educacionais comprometidos com a redução das desigualdades étnico-raciais considerem seu cruzamento com outras categorias sociais. A educação pública brasileira já tem muitas experiências exitosas nessa direção. Em um estudo em desenvolvimento em que analiso os 16 projetos ganhadores da última edição do Prêmio Educar para Igualdade Racial e de Gênero (2022), promovido pelo Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), identifiquei que estes inovam ao trabalhar o desenvolvimento e enaltecimento das diversas identidades étnico-raciais de maneira entrelaçada a outras expressões identitárias, com destaque para gênero, território e religião/espiritualidade. Seus resultados são promissores e estão alinhados com achados prévios da literatura internacional na área: maior compreensão e valorização por parte dos estudantes da própria subjetividade, melhoria no clima escolar e no senso de pertencimento dos alunos e maior engajamento acadêmico e consciência crítica destes.

Se por um lado essas práticas escolares parecem estar cada vez mais se multiplicando como resultado da coragem e comprometimento de diversos educadores com a justiça social e inovação pedagógica, por outro, o Brasil ainda carece de políticas públicas na educação básica com abordagem interseccional. O Ministério da Educação lançou em 2023 um pacote importante de medidas para equidade racial, incluindo programas de formação de professores na educação básica, que merece ser aplaudido. Para avançar, um dos caminhos possíveis é investir nas condições para o fortalecimento e difusão em escala de práticas interseccionais que as escolas e a sociedade civil já têm desenvolvido.

A educação brasileira será tão mais eficaz em proteger os jovens contra os efeitos perversos da discriminação racial quanto mais avançar em políticas públicas que considerem a convergência estrutural entre sistemas de privilégio e poder.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Julia Callegari foi "Tereza de Benguela", de Mestre Barrão.

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