Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Cotas raciais e meritocracia

O aumento da população negra em ocupações de nível mais elevado pode reduzir não só a desigualdade de salário e renda no Brasil, mas também pode impulsionar a mobilidade social

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Jorge Alexandre Neves

É PhD pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e professor do departamento de Sociologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

Dalson Figueiredo

Professor do departamento de Ciência Política da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), foi pesquisador visitante na Universidade de Oxford (Inglaterra)

"O que eu quero fazer é tirar o meu pai do corte de cana", disse Wellington Gomes ao ser questionado sobre o destino (guarde essa palavra) do primeiro salário após se formar em Medicina, dada a sua origem socioeconômica, filho de um trabalhador rural da Zona da Mata de Pernambuco (podemos dizer que estamos diante de um verdadeiro milagre). Na esmagadora maioria das vezes, pessoas que obtiveram sucesso em cursos concorridos em universidades públicas ou empregos governamentais de maior prestígio social contaram com uma série de investimentos pecuniários e não-pecuniários. Em uma frase que talvez a sua tia do grupo do WhatsApp da família não fique tão feliz em ouvir: a aprovação em concursos públicos é apenas mais um fator de reprodução intergeracional das desigualdades socioeconômicas.

Jorge é um homem branco de cabelos escuros e lisos e barba grisalha, com olhos escuros. Ele veste blazer e camisa de botão. Dalson é um homem branco de cabelos grisalhos e lisos. Ele veste uma camisa branca de botão
Jorge Alexandre Neves (à esq.) é PhD pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e professor de sociologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais); Dalson Figueiredo é professor de ciência política da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e foi pesquisador visitante na Universidade de Oxford (Inglaterra) - Divulgação

Se estivéssemos em um bar conversando com uma economista, aprenderíamos que existem vários tipos de desigualdades. Algumas são de estoque (como a concentração de renda medida pelo coeficiente de Gini, por exemplo) e outras são de fluxo. O tipo mais pesquisado de desigualdade de fluxo é a transmissão intergeracional de desigualdades (ou, olhando pelo seu inverso, a mobilidade socioeconômica entre gerações). Infelizmente, o último banco de dados em nível nacional a mensurar variáveis de origem socioeconômica foi a PNAD de 2014. O procedimento padrão para garantir resultados confiáveis é considerar na amostra os homens de 25 a 65 anos de idade que se declararam economicamente ocupados no momento da entrevista. Devemos olhar então para o nível ocupacional dos indivíduos, medido pelo International Socioeconomic Index (ISEI), que varia entre 0 e 100 pontos. Quanto maior, mais elevado o nível ocupacional. Por sua vez, o indicador de origem socioeconômica com a maior quantidade de registros disponíveis é a escolaridade da mãe, foco de nossa análise aqui.

Em outro artigo que publicamos recentemente (Neves e Figueiredo, 2024), mostramos que as cotas raciais nos concursos públicos tendem a reduzir uma desigualdade de estoque, qual seja, de rendimento do trabalho. Vamos hoje mudar o foco e analisar os fluxos intergeracionais. O primeiro passo é calcular a influência da origem socioeconômica (medida pela escolaridade da mãe) sobre o destino socioeconômico (medido pelo ISEI). As evidências indicam que o impacto da origem socioeconômica sobre o destino socioeconômico é 37% maior para indivíduos brancos do que para os negros (pretos e pardos).

Além de comparar a transmissão intergeracional da desigualdade entre brancos e negros, realizamos uma análise de caráter mais estrutural, para usar o termo popularizado pelo livro do ministro Silvio Almeida. Vamos estimar em que medida a maior ou menor presença de indivíduos negros em uma ocupação interfere na transmissão intergeracional do status socioeconômico. Vejamos o que dizem os dados.

Imagem mostra gráfico com setas coloridas para diferentes ocupações
Gráfico mostra relação entre origem e destino socioeconômico por grupo racial de ocupação - Divulgação

Preste atenção que esse gráfico é importante. Cada reta representa a relação entre a origem e o destino socioeconômico por grupo racial de ocupação. Olha que interessante, quando as ocupações têm uma maioria de indivíduos brancos (linhas vermelha e laranja), as curvas são bem mais altas, o que significa um destino socioeconômico mais rentável. Observe ainda que, quando a ocupação tem maioria de indivíduos brancos, há uma diferença significativa e crescente no destino socioeconômico entre brancos e negros. Isso pode ser observado pelo fato de que entre aqueles com mães analfabetas, a diferença no ISEI entre brancos e negros é de três pontos, ao passo que para aqueles com mães com educação superior a diferença é de cinco pontos. Este resultado corrobora algo já bem conhecido entre os especialistas no assunto, como mostra o estudo de Neves e Xavier (2016). Uma pessoa branca trabalhando em um emprego com maioria branca tem uma mãe com escolaridade média de 4,3 anos. No outro extremo, um indivíduo negro que se ocupa em uma profissão tipicamente desempenhada por negros tem uma genitora que estudou, em média, apenas 1,6 ano. Essas diferenças de origem não apenas afetam o futuro ocupacional dos filhos, mas reforçam a desigualdade entre brancos e negros no mercado de trabalho.Por outro lado, quando as ocupações têm maioria de indivíduos negros (linhas verde e azul), a influência da origem socioeconômica sobre o destino é muito menor, basta observar as inclinações das retas. Em números: o impacto da origem sobre o destino é 35% menor para indivíduos brancos em ocupações de maioria de negros do que para estes nas ocupações de maioria branca. Para os negros, o impacto da origem sobre o destino é 25% menor em ocupações de maioria negra do que nas ocupações de maioria branca. Anote aí para nunca mais esquecer: o aumento da presença de indivíduos negros em uma ocupação reduz de forma significativa o impacto da origem socioeconômica sobre o destino socioeconômico das pessoas!

Em termos práticos, essas evidências sugerem que o aumento da população negra em ocupações de nível mais elevado pode reduzir não só a desigualdade de salário e renda no Brasil, mas também pode impulsionar a mobilidade social. A adoção de cotas raciais para selecionar servidores públicos, principalmente para os cargos de maior status, tende a enfraquecer a transmissão intergeracional da desigualdade e favorecer a meritocracia. Os resultados apresentados aqui demonstram o quão equivocada (para manter a civilidade do texto) é a visão de que cotas raciais são um atentado à meritocracia. Aliás, a leitora está lembrada da história de Wellington Gomes que afirmou que sua prioridade seria tirar o pai do corte de cana? Wellington foi beneficiário do Programa Universidade para Todos (Prouni) e conseguiu acessar um curso que leva a uma ocupação de elevado nível socioeconômico (Medicina), mesmo partindo de uma origem extremamente desfavorável. Não foi milagre, foi política pública baseada em evidência!

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Jorge Alexandre Neves e Dalson Figueiredo foi "A Cidade", de Chico Science e Nação Zumbi.

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