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Vira-lata

Leitora faz homenagem a Hilda Hilst com releitura da obra 'Quincas Borba'

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Victoria Nogueira Rosa

Relatos diziam que, no passado, o vira-lata desta história tivera como mestre um filósofo de nome Quincas Borba. Os dois ficaram juntos até a morte do tutor, por velhice.

Deixado como herança para o único herdeiro do testamento do discípulo de Sócrates, o cachorro passou a atender outro dono: Rubião, mineiro que partiu de Barbacena em busca dos bens deixados pelo morto.

Não tardou para que o homem despertasse o desdém pelo animal. Descontente com a cria do defunto, não demora para que, num gesto de profunda crueldade, abra o portão da casa e deixe o cachorro sair para sempre, faça chuva ou faça sol.

Sombra de cachorro magro é projetada em piso de abrigo para cães abandonados
Nacho Doce - 30.set.2022/Reuters

O cão, "meio tamanho e pelo cor de chumbo", como descrevera o próprio Quincas Borba em seus manuscritos, resiste em esperar em frente à residência nas primeiras horas. Mas, puxado pela fome, vai em busca de comida. E anda, até se afastar por completo da agora ex-casa.

Os minutos se transformam em horas, que se transformam em dias. Vão uma, duas, três semanas…

Nas ruas, o cãozinho passa a se alimentar do lixo e das migalhas caídas de bocas e mesas de restaurantes. Quem o visse, diria que, decerto, teria o mesmo destino de Quincas Borba. Mas não. Por ora, esse não seria o seu destino.

Naquele dia, o cão resolvera deitar aos pés da vitrine de um petshop. A loja, acolhida num casarão recém reformado, há pouco anunciara a venda de dois novos produtos: iguanas e pássaros. Mas, antes deles, outros já faziam parte do estoque: filhotes de gato e cachorro, peixes e porquinhos-da-índia.

O vira-lata, de olhar que exalava alegria todas as vezes que alguém se aproximava, disputava a atenção dos transeuntes com os tais filhotes de raça.

Expostos para além do vidro, a presença dos animais de pelos muito bem cuidados contrastava com frases persuasivas como "compre o melhor amigo do homem!". Eram comercializados por uma bagatela e, depois que vendidos, repostos — a vitrine nunca ficava vazia.

De repente, um funcionário sai do estabelecimento. Queria ver se ameaçava chover como no dia anterior. Se sim, teria que, junto dos outros trabalhadores, fazer hora extra para bater a meta de vendas do dia.

Encara o vira-lata, magro e sujo. Lembra-se de ligar para uma mulher. Ao conhecimento dos moradores do bairro Botafogo, em Campinas, ela adotara uma centena de cachorros abandonados.

O dono do petshop não gostava, afinal, de animais de rua à espreita da porta, sejam cães ou pessoas. E o proprietário era justamente Rubião, que viria mais tarde conferir se os lucros da semana tinham aumentado. Que azar!

"[...] Está aqui. Ninguém quer. É adulto e sem raça", disse o homem a Hilda.

Depois de desligar o telefone, ele volta ao encontro do vira-lata.

"A sua nova dona vai vir te buscar, Quincas Borba. É assim que vai se chamar."

E afagou o cãozinho.

A escritora Hilda Hilst era apaixonada por cães e chegou a ter uma centena deles na Casa do Sol, em Campinas (SP) - Eder Chiodetto

Victoria Nogueira Rosa tem 23 anos, é estudante e mora em São Paulo (SP).

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