"Eu quero mais", diz uma dona de casa à beira do despejo, aos prantos, afogada em uma pilha de contas a pagar. Do outro lado do telefone, lhe respondem: "Todos queremos mais. Mas é preciso jogar com as cartas que temos". Este é o ponto de partida de "Excluídos", em que uma mulher parda efetivamente decide, segundo seu critério, fazer o que pode com o que tem: construir uma nova vida ao lado de um homem branco e rico, e renegar o passado. Isso inclui deixar seus filhos pretos para trás.
O britânico Nathaniel Martello-White, roteirista e diretor de "Excluídos", é um homem negro. A partir de um caso real que lhe contou sua mãe (uma mulher tão "birracial" quanto a protagonista da história que criou, como ele descreveu em várias das muitas entrevistas publicadas no Reino Unido), propõe uma espécie de conto de fadas cínico, perverso e traiçoeiro, neste thriller que vem ocupando os primeiros lugares no ranking de audiência da Netflix em vários países.
Provoca e perturba porque expõe desejos inconfessáveis de quem vive à margem e também no limite de suas possibilidades físicas e mentais. A desigualdade, a discriminação, o racismo esgotam, drenam, desesperam. Desumanizam.
"Sabemos que essa personagem seria polêmica. Sabemos que algumas pessoas vão ter problemas com as questões do abandono e do racismo internalizado", disse Martello-White à imprensa do seu país.
Neve - a protagonista negra que se reinventa a ponto de ensaiar até a entonação com que cumprimenta seus vizinhos abastados - é uma vilã particular: pode chegar a horrorizar o espectador pelo que fez com os filhos (que tentarão se vingar, logicamente, embora isso não seja o mais importante aqui), mas incomoda muito mais porque leva à concreção fantasias cruéis movidas por um impulso natural (e de sobrevivência): libertar-se da opressão (presente inclusive em seu casamento anterior).
Na tensão entre responsabilidades, mandatos, sentimentos e consciência moral, ela elege escapar do inferno da pobreza e de um labirinto social que não oferece saídas. Porque o esforço que (supõe-se) lega a todos as mesmas oportunidades não dá em nada - "vendedora do mês" reiteradas vezes em seu trabalho, Neve não consegue nem sequer pagar o aluguel.
Digamos que a "varinha de condão" da "meritocracia" age aqui de modo irônico, já que a recompensa obtida pela protagonista não deriva das jornadas eternas em um escritório, senão do laborioso exercício de renegar quem é. A venda que se decide a fazer - e que finalmente se mostra materialmente bem-sucedida - é a de si mesma.
Alguns cacoetes sobram para reafirmar o que é evidente desde o início da narrativa: a inadequação de Neve à sua vida atual assim como acontecia com a anterior (curiosamente simbolizada por uma coceira permanente causada pelas perucas de cabelo liso que usa).
No entanto, os traumas gerados pela marginalização e sua perniciosa capacidade de se replicar, fundindo vítima e algoz a todo instante, configuram uma dimensão-chave no filme, o que o torna não só uma boa alternativa pop do momento, mas uma oportunidade para estimular conversas sobre desigualdade, lutas individuais e coletivas, conflitos próprios e alheios.
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