Quadro-negro

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Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo
Descrição de chapéu América Latina

Enquanto isso, no Equador

Direto de Quito, antropóloga brasileira negra analisa o ambiente político e social do país

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Thuani Coutinho

Antropóloga

Quito (Equador)

​Enquanto comemoramos a eleição da primeira mulher negra vice-presidente de um país sulamericano e chora-se, no Brasil, o assassinato sistemático de indigenistas, o Equador também vive seus dias agudos.

Cheguei ao Equador no exato primeiro dia do Paro Nacional (greve nacional). Acabei tomando ciência do Paro desde Colômbia, onde fiz uma conexão por volta das três da tarde, horário do Equador, para chegar no país. Ao chegar, próximo das 5h da tarde, tudo funcionava normalmente. Ônibus, lojas, toda a cidade estava em movimento.

Ao longo dos dias, as tensões e conflitos foram se intensificando. Todos dias me dispus a andar pelo centro da cidade, e logo cedo, por volta das 9h da manhã, todo o perímetro entorno da Plaza de la Independencia já estava interditado e com grande volume de força policial.

As cercas de ferro foram colocadas fechando as ruas desde um ou dois quarteirões antes da praça onde se situa o Palácio de Carondelet, onde mora e trabalha o presidente. Em torno do palácio há uma grande concentração de museus e igrejas coloniais, que compõem o que chamam de centro histórico de Quito. Aproximei-me das barreiras e perguntei pelos museus. O policial perguntou minha nacionalidade, se eu era turista, e se estava só. Após isso, me deixou passar.

Policiais nas ruas.
Policiais tomam as ruas de Quito, capital do Equador. - Thuani Coutinho - Arquivo pessoal

Dentro do perímetro da Plaza havia apenas turistas, guias e funcionários dos prédios e igrejas. Outro perímetro com grande concentração de força policial foi o entorno da câmara de vereadores. Para além de outras pequenas concentrações em locais específicos, as outras partes da cidade seguem seu fluxo reduzido, porém normal, principalmente na parte da manhã.

Conversando com turistas de diversas nacionalidades durante minha circulação pelo centro da cidade, todos estavam preocupados com a situação do paro nacional. Se tornou algo importante a se acompanhar e que interferia fortemente nas atividades que poderiam ser praticadas ao longo da estadia na cidade de Quito.

Ainda assim, uma estratégia explicada para mim por um guia turístico me parecia estar sendo aplicada por todos (moradores, turistas e guias): "Te indico sair sempre pela manhã. Visite o máximo de coisas que puder e volte para sua hospedagem logo após o almoço. Os grevistas costumam chegar na parte da tarde, e desta forma você não corre perigo de ficar sem condução para voltar, ou ficar bloqueada em um bairro!"

Segui o conselho do guia de turismo, e assim pude transitar pela cidade todos os dias, visitando muitos pontos turísticos, até o domingo (19), quando a polícia fechou uma das estradas mais importantes da cidade com o intuito de impedir a entrada de uma parte do movimento indígena. A Estrada Quito - Baeza, que conecta a capital com a Amazônia equatoriana, começou a ser interditada por volta das 12h30 da tarde. O policial parou o carro em que eu estava e perguntou para onde iria. Após ouvir a resposta, informou que a via seria interditada entre 13h e 13h30 daquele dia, e que caso eu seguisse, não poderia voltar.

A estratégia de fechamento das principais entradas da cidade por parte do estado se dá pois houve a notícia de que um grande volume de indígenas das regiões Serra e Amazônica estão se encaminhando para a cidade, com o intuito de se juntar ao paro. Ou seja, a estratégia de proteger o centro, e consequentemente, o Palácio, expandiu-se, englobando uma tentativa de limitação de acesso à capital.

Foi disponibilizado pelo departamento de turismo do país, juntamente com algumas embaixadas, um formulário onde os estrangeiros poderiam compartilhar suas informações como: data de chegada, endereço de estadia, e data de partida. Dessa forma, o Estado, por meio deste departamento de turismo auxilia para que os turistas que estão em áreas bloqueadas cheguem ao aeroporto e não percam seus voos, cobrindo todas as províncias.

A mídia televisiva e o rádio parecem estar se isentando a se pronunciar amplamente sobre o contexto político, divulgando apenas pronunciamentos do presidente, e de apoiadores do governo, fazendo com que boa parte da população precise acessar as redes sociais para se manter informados sobre o avanço da greve, e como e por onde transitar na cidade.

O Twitter é uma rede social fortemente usada, e nele tem sido crescente o posicionamento de pessoas contra o paro. Nas ruas e nas redes sociais é possível ver, ouvir e ler uma polarização de opiniões, algumas a favor da luta indígena, e outras em contra com dizeres como (segue traduzido): "O índio é preguiçoso! Pagamos tudo para eles, e eles querem mais!", "Esses vândalos querem que o governo pague tudo!".

Além de cantos como: "Buzina! Buzina! Buzina! Não pare de buzinar! Porque o índio filho da p*#@%, daqui tem que vazar!", assim como a hashtag "#EuNãoParoEuTrabalho!" são possíveis de se ouvir em diferentes vídeos que mostram grupos de pessoas que estão indo às ruas protestar contra o paro e apoiar o governo.

Segundo o antropólogo equatoriano Iván Carrazco Montalvo, militante político, "essa dinâmica polarizada de opiniões e de ações localizadas que nos momentos de crise política equatoriana como a atual evidencia muita rejeição às pessoas indígenas, com uma pauta estruturante acionada por dicotomias ainda não conciliadas totalmente, e que parecem cada vez ficar mais distantes: cidade - campo, classe média - pobre, pardo/branco - indígena, produtor camponês - consumidor em cidade, homem - mulher, etc. Essa dinâmica polarizada está baseada na classe e na raça, mas sobretudo no histórico das revoltas indígenas que no Equador tomaram muita força nos anos 1960 com o retorno da democracia e a reforma agrária que procurou uma redistribuição da terra que desde a colônia esteve em mãos dos brancos e pardos fazendeiros."

Uma das formas do Estado equatoriano, usadas desde o ano 2019 para "controlar" o desconforto popular é o Estado de exceção, que explicando de forma concisa, é quando o governo restringe os direitos da população. Neste caso, houve a aplicação, dentre outras coisas, de um toque de recolher. O Estado de exceção do Equador foi declarado pelo presidente no dia 17 de junho de 2022, por volta das 22h.

Segundo alguns locais, o estado de exceção parece uma estratégia política para administrar as caminhadas pacíficas e outras atividades de resistência que os movimentos sociais e principalmente o movimento indígena estão pondo em prática. Visto que o horário é de 22h às 5h da manhã, contemplando, então, um horário que poderia ser de pico em relação às concentrações das pessoas que demandam ajustes na política do país, lembrando que as pessoas se reúnem no final da tarde e início da noite.

O movimento indígena no Equador é provavelmente o movimento político mais importante do país pela organização, coesão social e pela luta vigente por direitos desde de o retorno da democracia no país na década de 1960. Nesta luta contínua, no dia 13 de junho, mais uma vez as Lideranças indígenas e outros movimentos sociais solicitam uma conversa com o presidente para reivindicar direitos. Dentre eles, a redução dos valores do combustível e dos alimentos, além de pedir melhor acesso à saúde, educação e direitos trabalhistas.

Neste, que foi o primeiro dia de paro, foi liberada uma agenda de luta nacional, que contém as demandas do povo organizados em 10 tópicos.

Em suma, eles solicitam: a redução do valor do combustível, a possibilidade de negociação de dívidas e redução de taxas bancárias, ajuste e controle da especulação no valor dos alimentos, implantação de políticas que permitam o comércio justo entre produtores e consumidores, devolver os direitos trabalhistas, anulação das leis que permitem a mineração e extração de petróleo em ecossistemas sensíveis como Amazônia, acesso a saúde e educação e mais orçamento público para frear a crise de segurança.

Por fim, contextualizando a situação política atual, Carrazco afirma:

"A luta pelos direitos da população indígena é o motivante dessa nova manifestação e luta, mas não é ‘apenas’ pela população indígena, camponesa, precarizada e agricultora. É uma luta popular pelos direitos da população que está na margem das garantias constitucionais. A partir do ano 2019, com a retirada do subsídio da gasolina e a implementação de políticas neoliberais, a vida no Equador foi ficando mais difícil de se reproduzir, especialmente pelo aumento da desigualdade e da fome sem ajustes salariais, possibilitando o acesso aos direitos materiais.

Além disso, nas manifestações cidadãs do ano 2019, o Estado cometeu vários atropelos aos direitos humanos, usando formas violentas de controle que deixaram pessoas e instituições afetadas diretamente com as seguintes vulnerações de Estado: 1.340 pessoas feridas, 9 pessoas mortas, várias detenções violentas, invasões da polícia a centros culturais e Universidades que eram entendidas como locais de paz, etc. Cada uma destas vulnerações foram feitas no contexto de vários Estados de exceção, com grande polarização social promovida por um pequeno setor de classe média alta que hoje novamente grita "#EuNãoParoEuTrabalho!, ao tempo que organiza coletas econômicas para abastecer aos militares e policiais que ‘defendem’ a cidade de Quito da chegada dos ‘indígenas vândalos'."

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