No dia 1º de janeiro de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva dava início a seu primeiro mandato.
Era, também, a primeira vez, em pouco mais de 100 anos, que um governo que ameaçava ser exclusivamente de esquerda assumia o governo.
Com arranjos como o vice, o empresário José Alencar, o PT na época era só uma ameaça, e por isso foi eleito.
Mas ameaça para quem?
Para o que hoje chamamos de geração nem-nem. Os que, politicamente, preferem manter suas vidas como estão, sem guinadas, seja à direita ou à esquerda.
Como se existissem guinadas à direita. Não existem. Uma boa definição de direita é a ausência de tudo.
A população nem-nem brasileira, bem educada, bem alimentada, é hoje quem lê jornal. Ou quem se informa pela imprensa.
Que desde janeiro de 2003 descobriu que a marcação cerrada sobre o governo do PT agradava aos nem-nens.
Privilégio que Fernando Henrique não teve, salvo as já antológicas colunas que Luis Fernando Veríssimo e Elio Gaspari publicavam.
A imprensa passou a hegemonicamente escrever para os nem nems, tolos que se sentem mais inteligentes por serem os poucos que conseguiram enxergar uma verdade hipotética que ninguém enxergou. Presunção existencial.
E assim o antipetismo cresceu, turbinando-se com todo show midiático que foi a Operação Lava Jato, teatro absurdo alçado pela imprensa a evento factual. Deu certo para o jornalismo praticado em todas as plataformas.
Na época, o jornalismo fez uma festa. Hoje, a ressaca é nossa.
Contra Dilma Rousseff, somaram-se fatores misóginos. Na época do impeachment que sofreu, a imprensa divulgou, a título de curiosidade, e não como indício do monstruoso país que iríamos nos transformar, que estavam na moda adesivos automotivos que exibiam a caricatura da presidenta de pernas abertas com um orifício no lugar de sua vagina para que, ao serem colados na entrada de gasolina do veículo, o ato de abastecer brincasse com nada menos que estupro.
E então veio o site Antagonista e inaugurou a notícia-meme, com o bordão "Lula preso amanhã".
E os jornais televisivos da Rede Record e da Rede TV.
E os programas da rádio, e agora também TV, Jovem Pan.
Nas eleições de 2018, agressões físicas a petistas ocorreram e não foram denunciadas pela imprensa.
E outro editorial tornou-se meme: "Uma escolha muito difícil", ousava comparar, na época, Bolsonaro a Haddad. Hoje, os próprios autores sabem o resultado.
Há um mês, em Recife, um bolsonarista jogou um bloco de cimento na cabeça de um idoso petista. Não computou-se com destaque o assunto.
Na mais recente coluna de Pondé, veterano nem nem carreirista , o colunista da Folha equivale Lula e Bolsonaro. Está falando para seu público, ganhando seu pão.
Mas que preço estamos dispostos a pagar por esse pão? Quanto vale fazermos nossa fama alimentando o ódio do público?
Ódio esse que acaba intelectualmente avalizando assassinatos.
"Ódio vende. Excitação vende", diz a fala de ‘The Boys’, da Amazon Prime, seriado que melhor explica hoje o mundo.
Em determinada cena, um super-herói facista, racista, de ultradireita, caricatura declarada de Donald Trump, arranca a cabeça de um opositor de esquerda na frente de uma multidão de direita.
Essa multidão, chocada, silencia. O espectador tem a impressão de que vão, finalmente, entender que seu super-herói é, na verdade, um psicopata.
Mas, 30 segundos depois, resolvem aplaudir o Donald Trump voador supremacista.
Estamos cada vez mais parecidos com uma caricatura estadunidense porque nossa imprensa, moldada, seja nos impressos, internet ou TV, nos moldes norte-americanos, também resolveu se comportar assim quando a esquerda chegou ao poder em 2003.
Agora, no país onde um anestesista é flagrado estuprando uma mulher após ela dar da luz, e que vê seu número de seguidores no Instagram quintuplicar, há a chance desta mesma esquerda voltar ao poder.
Veremos que acordo tácito editores e leitores irão fazer. Um país melhor ou o prazer de abrir o jornal e as homepages e sentir emoções como ódio e asco de tudo, essa coisa que no fundo a gente gosta, porque não merecemos um mundo melhor do que esse.
Hoje, o que temos, porque foi o que fizemos, é algo como acordar e ir direto pegar o celular para ver as primeiras notícias. Mehor que café. "Adoro sentir o cheiro de napalm pela manhã". "O horror, o horror".
Umas escolhas muito difíceis.
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