Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Estreias definem Cinema Negro como o atual melhor do mundo

O brasileiro 'Marte Um' e o americano 'Não! Não Olhe!' olham para cima e miram o infinito

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Cada filme da Filmes de Plástico é um manifesto. "Marte Um", conta a história de todo homem preto: o que fazer com o restrito destino que o capitalismo, que só existe por conta do racismo, nos delega?

Somos, nós meninos, feitos, segundo o capital, para sermos (na melhor das hipóteses) jogadores de futebol, músicos, qualquer coisa que entretenha "o branco síndico do condomínio que é nossa sociedade" (referência que só quem vir o filme irá pegar. Guarde.)

Dois jovens negros olham para o céu
Os atores Cícero Lucas, de ´Marte Um´ e Daniel Kaluuya, de 'Não! Não Olhe!' - Divulgação

Deivinho é um garoto negro de classe média baixa que sonha se tornar astronauta. Mais especificamente, participar do programa de colonização do planeta vermelho, iniciativa real chamada "Marte Um". Mas o pai quer que o menino jogue futebol para tirar a família do aperto de grana.

Marte é o deus romano da guerra, e o símbolo do mal-estar. O filme começa com o som de bolsonaristas comemorando, em 2018, a eleição do atual presidente. A história se passa durante seu governo, hoje sabemos regido sobre o signo de marte, da peste, dos tempos em que as pessoas começam a sentir mal estares e insônias terríveis, e até alcoólatras em reabilitação voltam a beber.

Só quem floresce neste planeta terrível que nos tornamos é a geração que hoje tem 25, 26 anos, geralmente jovens mulheres pretas, geralmente LGBTQIA+, geralmente chamadas de "canceladoras" por homens intelectuais de 40 anos pra cima, e cheias de vontade de olhar pra frente, e de temer quase nada, e amar quase tudo.

"Marte Um", apesar de ser um filme que fala de masculinidades, é uma carta de amor à geração que segurou as pontas nos anos Bolsonaro enquanto a classe média branca chorou embaixo da cama ou em cima de divãs caríssimos.

Os filmes de Gabriel Martins devem ser apreciados em cada detalhe. Não há objeto de cena, por menor que seja, que não conte uma história, ou faça um comentário valioso. O jeito de Gabriel, e da novíssima turma de cineastas de menos de 40, filmar cenas com personagens populares, finalmente quebra estereótipos.

Comparem a cena do churrasco e samba na casa de Deivinho com qualquer uma cena de churrasco e samba filmadas por um brasileiro até oito anos atrás. Há um novíssimo cinema já consagrando-se no Brasil e no mundo.

E esse cinema é preto.

Talvez o evento do ano seja o novo filme de Jordan Peele, provavelmente o cineasta mais festejado, em termos de unanimidade, da crítica mundial. E que traz, de quebra, uma unanimidade popular também. No mesmo dia que estreou nos cinemas "Marte um", também estreou "Não! Não Olhe!".

É apenas seu terceiro filme. É apenas sua primeira ficção científica. E, francamente, vamos ficar ainda muitos anos falando dele. Nos EUA, onde já estreou há algum tempo, já há uma oficial campanha para que o filme seja assistido novamente. Há muitas camadas de sofisticação por baixo de um filme que apenas nos aterroriza, diverte, nos faz sentir estranhos e bizarros.

Fiquem tranquilos. Não daremos spoilers aqui.

O que todos sabem é que se trata de um filme onde dois jovens irmãos negros; ela moderna, expansiva, groovy, digitalizada; ele introspectivo, sem fé, herdeiro dos discos de vinil do pai. Os dois são bisnetos do jóquei negro que foi modelo para a primeira imagem em movimento inventada pelo homem, o "Plate Number 626", do fotógrafo branco Eadweard Muybridge.

Na vida real, o cientista branco ficou famoso. O jóquei negro, oficialmente o primeiro ator da história do cinema, sumiu no anonimato. Jordan Peele, um profundo estudioso do cinema, teve a sacada, e fez disso um dos muitos e muitos panos de fundo para uma história de extraterrestres, que irá ser filmada em tomadas diurnas, no risco do sol a pino, como foi feito com obras-primas como Halloween, de John Carpenter, e Midsommar, de Ari Aster.

Em "Não! Não corra!", Peele, que produz, roteiriza e dirige o filme, volta a trabalhar com Daniel Kaluuya, astro do já clássico "Corra!". E, com trocadilho, "prepare-se!", porque vamos ver aqui nada menos um ator transformar-se no maior ator vivo. Fora do peso, com uma fisicalidade estonteante (ele fala com o corpo, não com palavras) que lembra outro predicado das produções da brasileira Filmes de Plástico.

Fisicalidade de não normatividade de corpos. Nada de atores a atrizes que tiveram que violentar seus corpos em academias para ganhar o papel.

O nome do papel de Kaluuya é outra tacada sutil genial de Jordan Peele. O herói da trama se chama O.J. Uma menção clara a O.J. Simpson, e rimos quando uma atriz madame branca se horroriza com o nome do rapaz e ele confronta.

Mas o tema central de "Não! Não corra!", é a crítica à exploração do outro, pessoas, crianças, cavalos, chimpanzés, para que o espetáculo não pare. Seja ele um blockbuster hollywoodiano, seja ele um pequeno circo em um país distante.

E uma cuidadosa crítica ao lixo que produzimos, vindos dessa necessidade contemporânea de produzirmos cada vez mais filmes, jogos, músicas, piadas, tweets, perfis de Tik Tok, tudo o que é conteúdo extra, que não temos condições de digerir.

Antes do filme, em cima de uma tela preta, Peele coloca uma citação da Bíblia. "E lançarei sobre ti imundices, e envergonhar-te-ei, e pôr-te-ei como espetáculo".

O filme evento de Jordan Peele é um vômito, literalmente. Mas isso você só vai saber vendo, ou talvez revendo o filme. Enquanto você não se sentir envergonhado pelo modo com o qual você vem se relacionando com o entretenimento, você não entendeu ainda as camadas do filme. Reveja, persista. Você precisa dele.

O espetáculo do novo cinema preto mundial não fala nem com o estômago nem com o fígado.
O novo cinema preto é todo coração.

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