Quadro-negro

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Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Assata Shakur vai salvar a saúde mental do brasileiro

Autobiografia da ativista mais procurada pelo FBI finalmente é lançada no Brasil

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Mulher negra
A ativista estadunidense Assata Shakur é uma das 10 pessoas mais procuradas pelo FBI - Reprodução

"O ar parecia um vidro frio. Bolhas enormes se formavam e estouravam. Cada estouro era como uma explosão no meu peito. Na boca, um gosto de sangue e poeira. De repente, a porta se abriu e eu me senti sendo arrastada para a calçada. Empurrada e esmurrada, um pé sobre minha cabeça, um chute no estômago. Policiais por toda parte... Senti quando me puxaram pelos pés e me arrastaram pela calçada. Meu peito estava pegando fogo. Minha blusa, roxa de sangue. Eu estava convencida de que meu braço havia sido arrancado e estava pendurado dentro da minha camisa por algumas tiras de carne."

Neste trecho, retirado da esperada edição brasileira de "Assata - Uma Biografia" (Editora Pallas, 2022), a autora descreve os dois tiros que levou no peito resultantes de uma abordagem policial, em uma estrada dos EUA, Assata seria presa sob a acusação de terrorismo.

Estamos nos anos 1970. Nesta época, ser negro e ativista é, para as autoridades estadunidenses, ser terrorista. Assata foi, e ainda é, até hoje, uma das dez pessoas mais procuradas pelo FBI.

Está viva em algum lugar do mundo. Quase com toda certeza, em Cuba. O governo de Donald Trump tentou, em vão, capturá-la na ilha. É hoje uma senhora.

O livro, praticamente pronto para ser adaptado para o cinema, é narrado como um filme de ação com momentos de ternura em inúmeros flashbacks nos quais a autora conta sua infância influenciada por mulheres negras autônomas e, ao seu jeito, divertidas subversivas.

Sua relação com a filha é de uma profundidade descrita com tanta habilidade que lembra as "escrevivências" de Conceição Evaristo.

No livro, acompanhamos desde a infância de Assata Shakur ao descobrimento do black power, do momento tão importante que é quando uma mulher negra para de alisar o cabelo e assume a beleza do que é natural. Nele, acompanhamos, sob um olhar feminino, o partido dos Panteras Negras e sua luta para que entrasse na pauta também as questões de gênero e classe.

As observações de Assata à respeito do socialismo e comunismo são melhores do que qualquer pensata que tenha se escrito na Europa no século 20.

Presa, Assata escreveu sobre a política de encarceramento em massa de gente preta. Em 1978, foi libertada em uma ação cinematográfica de um presídio de Nova Jersey, com a ajuda de um grupo que ela não cita na autobiografia, à guisa de preservação dos envolvidos.

Cada capítulo é finalizado com um poema da autora. Alguns, matadores, como esse:

"História

Você morreu.

Eu chorei.

E continuei a me levantar

Um pouco mais lenta

E um pouco mais letal."

Agarrar-se a este livro, hoje, em um país onde brasileiros de extrema direita agridem opositores nas ruas, e onde brasileiros pretos são, desde sempre, tratados como Assata em abordagens policiais, é essencial, curativo.

Revigora nosso sistema imunológico.

Em um Brasil 2022, onde parece prevalecer a cultura do medo, essa espécie de furacão que nos deixa confusos, Assata Shakur nos mostra como entender que é justamente no olho de um furacão o lugar onde não venta.

Na zona leste de São Paulo funciona a biblioteca comunitária Assata Shakur. Lá, além de um acervo ótimo de livros pretos para crianças pretas, eventos são realizados, como jantares, reuniões e trocas de afetos. A arte de continuar existindo no olho do furacão.

E eu sei que você não sabia da biblioteca comunitária em SP. E talvez nunca ouviu falar de Assata Shakur.

É por isso que você está aí, apavorado, sendo levado para lá e para cá pelo vento.

O verão ainda não chegou. Ainda há dias frios (especialmente no sudeste e no sul, onde pessoas estão assustadas com a vitória da extrema direta nestas regiões nas últimas eleições).

Dias frios pedem livros.

Então, aproveite que em certos lugares do país um ar que parece um vidro frio te arrepia, se agarre com quem já tem experiência para dar e vender e ler.

Aproveite para conhecer o que pessoas como Assata já conhecem, e resolveram compartilhar com o leitor.

Conhecimento nos deixa pessimista. Muito conhecimento nos deixa esperançosos.

Angela Davis, que escreveu o prefácio do livro, diz que as palavras de Assata lembram a frase "É exatamente por aqueles que não têm esperança que a esperança nos é dada".

A autobiografia de Assata Shakur é isso.

Algo que nos está sendo dado.

Uma dádiva.

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