Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Minha identidade racial nasceu em novembro

Em mais um artigo escritos por mulheres pretas CEOs, o assunto é racismo corporativo

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Mulher negra sorrindo
Thainá Assumpção é Coordenadora de Comunidade da ImpulsoBeta, consultoria de gestão de mudança em diversidade, equidade e inclusão. - Divulgação

Por Thainá Assumpção

Declarada parda na certidão de nascimento, nascia, em 1990, na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, a minha identidade racial. Filha de pais negros, aparentando um tom de pele notoriamente retinto, o processo de embranquecimento e a negação do racismo já atravessavam a minha história, a partir do não reconhecimento da minha cor preta.

Curiosamente, aquela maternidade carrega na memória a trajetória de Antônio Ferreira Piques, comerciante popular que ficou conhecido como "o mais querido leiloeiro de pessoas escravizadas de São Paulo", um fato relevante no contexto da minha ancestralidade e que, ainda sem entender, faria conexão com a exclusão social que estava por vir.

Das primeiras lembranças da infância em fase escolar, me recordo de ser apresentada a mais comum manifestação do racismo estrutural, ao ouvir piadas sobre o meu cabelo, cor da pele e roupas, resultado da educação violenta recebida por crianças brancas dentro do ambiente familiar. A existência de um padrão estético desejado pela sociedade impõe a todas as pessoas de pele não branca, olhos claros e cabelos lisos, um lugar de não aceitação, do que é feio e não amável. Nesta fase, em meados de 1996, não havia lugar para o resgate da autoestima negra, diante da figura do que era belo na televisão, como ser paquita da Xuxa, padrão este, que me seguiu até a adolescência e juventude, ao ponto de negar a existência da beleza em minha negritude.

Na vivência das múltiplas manifestações do racismo, me projeto no futuro, passando pela jornada de ingresso na universidade, por meio de bolsa de estudos, até as experiências no mercado de trabalho. Graduada em Direito, passei pelo período acadêmico sem muitas amizades. Fiz alguns estágios em instituições públicas e apenas um, bem emblemático, num escritório de advocacia, onde minha primeira função foi retirar o lixo da sala do advogado, além de servir o café e limpar a mesa. Naquele momento, para além da vulnerabilidade em não me encaixar no contexto social-econômico, era forçado o lugar de subalternidade [exploração], dizendo que o ambiente não servia para negros e periféricos.

A ausência de pessoas negras nos espaços sociais, políticos de tomada de decisão e poder, revela profundas desigualdades no Brasil. Segundo o IBGE, há mais de 56% de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, mas, ao fazer um breve levantamento da representatividade nas organizações públicas e privadas, encontramos um alto índice de profissionais em cargos operacionais, com baixos salários, em condições de exploração. Retrato de um país saudoso ao período colonial, que impõe condições análogas à escravidão para trabalhadores negros.

O racismo estrutural fortalece o comportamento excludente direcionado à população negra, carregado de mitos, abrange conceitos como a democracia racial, que nega a existência de raça para que todas as pessoas sejam vistas como iguais; na crença da meritocracia, em que as oportunidades são as mesmas para quem é pobre e para quem é rico, basta querer; e, por último, o racismo reverso, que supõe a discriminação sofrida por pessoas brancas, equiparada ao que acontece a população negra. Se faz necessário falar sobre branquitude, reconhecer privilégios e entender a existência de vantagens sociais que abrem portas para o trabalho, formação acadêmica, política, economia, entre outros espaços de visibilidade.

A partir desse contexto, embarco na jornada profissional do terceiro setor, atuando na assistência social com a reinserção de jovens à vida em sociedade, após cometerem atos infracionais. Com a dura missão de conectar a realidade aos objetivos judiciais de enquadrar os assistidos no ambiente escolar, de trabalho e lazer, o abismo existente entre os desejos sociais e a falta de dignidade da pessoa periférica, só aumentavam. Acendia um novo olhar para a manutenção da desigualdade aplicada a pessoas pretas e pobres.

Ao ingressar no ambiente corporativo, o tema diversidade e inclusão se apresentou como uma forma de lidar com as feridas emocionais causadas pelo racismo e o grito de resistência. Acontece que, neste momento, não estava preparada para enfrentar com os efeitos à saúde mental, entendendo que há longos passos entre diversificar ambientes e, de fato, incluir.

A educação é uma das principais frentes de atuação do movimento negro no Brasil como forma de emancipação da população e combate ao racismo. Ainda que letrada sobre equidade racial e de gênero, enfrentar estereótipos relacionados à negritude, sendo eu uma mulher preta e periférica, tornou a caminhada um confronto entre identidade e a responsabilidade em manter a cultura organizacional. Já diz a escritora e arquiteta Joice Berth, "enquanto o racismo reverberar na sociedade, não há como ignorar".

A diversidade está ligada à representação demográfica, no equilíbrio entre o cenário social da população brasileira e o ambiente da empresa, representado por diferentes núcleos e vivências ocupando todas as áreas, cargos e oportunidades. A inclusão trata de reconhecer e respeitar essas diferenças, tornando o local de trabalho mais pertencente a todas as pessoas.

Ocorre que, o cenário atual retrata o padrão de pessoas brancas em posições de tomada de decisão, com pensamentos e comportamentos que refletem a disparidade entre classes sociais e de raça, reproduzindo ações discriminatórias no cotidiano das empresas. Como ter voz onde as pessoas não se veem representadas?

Sabendo que a pauta racial permeia todas as relações de uma organização, para além de políticas de diversidade e projetos de contratação, mergulhar na realidade histórico-cultural do país é fundamental para compreender as raízes do racismo em todas as manifestações sociais. Cabendo ao papel de cada pessoa no combate às opressões e manutenção do privilégio, o letramento constante baseado no respeito.

Thainá Assumpção é Coordenadora de Comunidade da ImpulsoBeta, consultoria de gestão de mudança em diversidade, equidade e inclusão.

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