Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Com a câmera na mão, Beth Carvalho descobre que o melhor do Brasil é nossa negritude

Documentário sobre cantora utiliza imagens filmadas pela própria biografada

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Estreou nos cinemas um raríssimo tipo de documentário: uma obra na qual quem filma o que se vê é o próprio biografado.

Raríssimo porque só havíamos visto antes, na história do cinema, duas cine biografias nesse tipo. "As Praias de Agnes" (2008) e "Agnes por Varda" (2019), da mestra francesa Agnes Varda.

Dos predicados atribuídos ao trabalho de Varda, o mais celebrado deles é o fato de que, ao falar dela mesma, acaba falando mais de seus encontros e memórias. Ou melhor, de que ela mesma é constituída da soma de seus encontros e de suas memórias.

"Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho" utiliza-se, em quase toda sua totalidade, de imagens filmadas pela rainha do samba. Descobriu-se que a cantora, morta em 2019, deixou espalhadas em torno de 800 fitas de VHS, totalizando 2.000 horas de vídeo.

Cena do documentário 'Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho', dirigido por Pedro Bronz
Cena do documentário 'Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho', dirigido por Pedro Bronz - Divulgação

Nessas 2.000 horas, seus encontros e suas memórias. Coube a Pedro Bronz, diretor e roteirista, a imensa e gloriosa tarefa de ser curador de todo este material; de escolher, dentre tantas horas, a narrativa, a andança da vida de Beth Carvalho. Ficou tanto material bom de fora que a obra irá, em breve, e estendida, transformar-se em série para o Globoplay.

O documentário começa com um exemplar desencontro. O de Beth, mulher branca da zona sul do Rio de Janeiro, com as reuniões elitistas dos músicos da bossa nova. Muito jovem, tomou a decisão que mudaria sua vida, a vida afetiva do Brasil (todos os brasileiros têm pelo menos uma canção interpretada por Beth em seu repertório), a história do próprio samba (que se modifica a partir das oportunidades que a cantora dá para novos compositores como Zeca Pagodinho e Almir Guineto) e a história do registro da vida de compositores negros.

Essa decisão foi a que deveríamos, segundo a própria afirma em determinado momento do filme, "buscar a sua própria negritude".

Foi o que fez Beth a passar a frequentar os morros e as periferias da cidade. Foi o que a fez entrar em contato com o mundo do samba em seu substrato mais africano: os terreiros e os fundos de quintais.

Os primeiros encontros de Beth com o mundo do samba, filmados ou gravados pela própria, são com nomes como Cartola e Nelson Cavaquinho. No filme, são de arrepiar as sequências inéditas, nunca antes vistas, de clássicos como "As Rosas não Falam" tocados pela primeira vez em um cantinho improvisado de uma sala num barraco de morro, e a revelação da versão original de "Folhas Secas".

"Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho" é um filme de arquivo em um país que trata muito mal o seu arquivo. Ainda mais os arquivos que tratam de registrar a história da trajetória de artistas negros no Brasil.

O filme é a biografia de Beth Carvalho, mas a sensação que se tem é que a obra é um documentário feito por Beth sobre os geniais (palavras dela) homens pretos do samba que passaram por seu caminho e que ela, ao contrário de tantas outras divas da canção, fez questão de profissionalmente dar oportunidade e visibilidade.

Em 1968, Agnes Varda fez o seu documentário sobre os Panteras Negras na própria Califónia, no próprio fundo de quintal da organização que os estadunidenses fizeram de tudo para criminalizar. Panteras Negras, de Varda, é até hoje o melhor documento sobre estes homens negros fundamentais. Monarco, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Nelson Cavaquinho e Cartola são os Panteras Negras de Beth Carvalho.

Militante de esquerda, Beth tinha uma definitiva consciência de seus privilégios, Sendo a câmera na mão o maior deles. Quando estudantes de cinema entram na escola, a primeira pergunta a ser feita é "o que fazer com uma câmera"? Beth tudo via como se é: pelo viés político.

Se a vemos, em um momento do filme, dentro de um estúdio de gravação, defendendo um acorde mais simples para um arranjo, essa escolha é política. Se a vemos, no final de sua vida, cantando no palco deitada em um divã, contra os médicos e contra as dores, essa foi uma escolha política. Até a cena pretensamente mais íntima de s ua vida, a do parto de sua filha, é filmada com gente com bandeira do Botafogo por perto.

O filme traz imagens de dois eventos que, particularmente, cravam-se em minha memória, pois eu era um adolescente e estava lá para ver. As raras imagens do espetacular show que Beth fez com grupo Fundo de Quintal na estação do metrô, em 1986 –dentro de um projeto do PDT de Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento, que buscava ocupar os novos espaços da cidade com a classe C– e o comício das Diretas Já, três anos antes, quando é chamada para cantar no palco com a presença predominante de homens (outra tônica em sua vida, isso de ser a pioneira em transitar em ambientes masculinos).

"Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho" é vários documentários dentro de um só. Ele, o filme, nos diz uma coisa linda: é necessário que entendamos que todos nós somos vários documentários dentro de um só. O que é a exata ideia de ancestralidade afrocêntrica.

É necessário entendermos que tudo em volta é acervo e documento. Que se tratados com o interesse profundo com o qual Beth Carvalho viu a vida ao redor, transformam-se em arquivos eternizados, caminhos sem fim.

Isso é buscar a nossa própria negritude.

Entendermos que somos a soma de nossos encontros nas encruzilhadas da vida.

Entendermos que tudo é memória.

Que tudo é andança.

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