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Filme sobre Beth Carvalho mostra como o samba surge do encontro

Feito a partir de filmagens amadoras da cantora, 'Andança' mostra a intimidade da artista e de gênios que a rodeavam

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Andança – Os Encontros e As Memórias de Beth Carvalho

  • Quando Em cartaz na Mostra de SP: Espaço Itaú, qua. (2), 17h30
  • Classificação Livre
  • Produção Brasil, 2022
  • Direção Pedro Bronz

"E aquela do moinho, como é que é?", pergunta Beth Carvalho (1946-2019) a Cartola em uma gravação de áudio, exibida no filme "Andança". O registro revela a cantora, estrela do documentário, e o sambista no qual ele apresenta novas composições que havia feito —"As Rosas Não Falam" e "O Mundo É um Moinho", dois clássicos. A primeira se tornaria sucesso na voz dela; já a segunda, para o compositor, era lenta demais para se encaixar no repertório da intérprete.

São cenas como essa, absolutamente espontâneas, captando momentos informais de criação artística e convivência entre gênios do samba, que constituem "Andança: Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho", dirigido por Pedro Bronz. Exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa explora um acervo de imagens amadoras, feitas em câmeras super 8, VHS, mini-dv, k7 e fotos.

Cena do documentário 'Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho', dirigido por Pedro Bronz
Cena do documentário 'Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho', dirigido por Pedro Bronz - Divulgação

Logo no começo, Beth Carvalho se apresenta como "um museu", ou seja, alguém que registra os momentos de sua carreira. E é através dessas gravações que a história da artista vai sendo contada, de quando João Gilberto despertou nela a vontade de tocar violão, passando pela transição da bossa nova para o samba até sua atuação política e a consagração como a Madrinha do Samba.

O caminho da cantora começa quando ela conta sobre os encontros dos bossanovistas em apartamentos na zona sul do Rio de Janeiro. "Musicalmente era bom, mas o comportamento era muito elitista", ela diz. "E aquilo me preocupava, porque musicalmente eu estava em outra."

Foram Elizeth Cardoso e Clementina de Jesus quem mais inspiraram a mudança estética de Beth Carvalho, que foi da música "Andança", apresentada no 3º Festival Internacional da Canção, em 1968, aos encontros com Cartola e Nelson Cavaquinho. Dois dos mais celebrados nomes do samba, eles surgem em registros íntimos, debatendo composições pedidas pela cantora ou contando histórias do cotidiano.

O filme examina o processo de construção do repertório que Beth Carvalho imortalizou em sua voz, todo ele resultado de encontros. Não fica dúvidas do quanto a cantora era apaixonada pela música brasileira —que na cabeça dela tinha no samba sua expressão máxima—, e principalmente pelos compositores, músicos e bambas com quem convivia.

Há gravações de Nelson Cavaquinho, quem ela chama de "o maior compositor do mundo", mostrando a ela "Folhas Secas" e "Juízo Final". Beth se apresenta como uma "garimpeira", que vai aonde o povo está. "Os autores, os compositores, estão ali. E eu vou na fonte", ela diz, antes de aparecer filmando sambistas da Velha Guarda da Portela —entre eles Mancéa, Argemiro, Casquinha, Paulão 7 Cordas e Monarco— em busca de canções para seu álbum "Pérolas", de 1992.

É interessante perceber como as composições chegam até Beth porque ela tinha uma amizade com esses autores, o que também gera nela um compromisso de promover a cultura pela qual era apaixonada. A artista aparece levando ao seu palco Clementina de Jesus e cantando "Coisa de Pele", então inédita, com Jorge Aragão, por exemplo.

Ela também reconhece e exalta a importância central dos negros no samba, dizendo em uma entrevista que falta "brasilidade" e "negritude" para a música brasileira. E parecia preocupada com o funcionamento das gravadoras e com a baixa remuneração dada aos compositores. "Aí fica a cantora com um nível de vida muito melhor do que a pessoa que deu a música pra ela."

Em certa altura do filme, Beth diz que o Brasil não reconhece suas culturas populares, e que precisou surgir Alceu Valença e Elba Ramalho para que o baião deixasse de ser discriminado. Essa vontade de desnudar o samba para o mundo fica evidente no ímpeto da cantora em registrar seus encontros, como quando mostra Dino 7 Cordas explicando as cordas que usa para construir seu violão.

Grande parte da nata do samba divide com Beth o tempo de tela em "Andança", o que de certa forma diz muito sobre a importância da própria cantora para a música brasileira. Mais que uma intérprete talentosa, ela era uma aglutinadora de gênios, capaz de reunir em seu entorno os protagonistas de uma cultura que fervilhava no morro e no subúrbio, mas não tinha a mesma importância para as elites —onde o dinheiro circulava.

A história que melhor a representa talvez seja o encontro com os músicos do Cacique de Ramos, cuja quadra ela frequentava religiosamente toda quarta-feira. Seu fascínio por aquele ambiente informal de bebedeira, futebol, carteado e pagode fez com que ela decidisse levar ao estúdio aqueles músicos —entre eles Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Ubirany, Bira Presidente, Sereno e Neoci, entre outros, que depois formaram o Fundo de Quintal.

Dotada de um entendimento refinado dos tambores e dos acordes, Beth notou as transformações estéticas do samba feito com banjo, repique de mão e tantã. Seu produtor, Rildo Hora, relutou em levar aqueles músicos sem experiência para o estúdio, mas ela bateu o pé.

"Eu tenho certeza de que isso é uma revolução", ela diz. Dali, surgiu o álbum "De Pé no Chão", de 1978, que imortalizou a roda do Cacique, e foi um dos maiores sucessos da carreira de Beth, puxado pelo hit "Vou Festejar".

Ela ainda filma seu encontro com Fidel Castro, em 1994, em Cuba, e surge cantando "Virada" em uma das manifestações pelas Diretas Já, dez anos antes. "Tem que ter um discurso político. Se não, não sou eu", diz a artista, numa reunião com amigos.

Ao revelar a intimidade de Beth, "Andança" acaba mostrando, também, os bastidores do próprio samba. Na contramão dos documentários pasteurizados que inundam o streaming, o filme apresenta personagens apenas pelos nomes, sem se preocupar em dar grandes explicações e capturando a espontaneidade que está no centro de sua criação artística.

E mesmo para quem não conhece os nomes que surgem nas cenas, o documentário conta uma história de arte feita a partir de encontros e de uma paixão inesgotável pela cultura popular —que dura até os últimos momentos de vida de Beth, quando ela, mesmo com a saúde debilitada, subia ao palco para cantar, nem que para isso fosse deitada.

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