São Paulo Antiga

A história e as curiosidades de São Paulo passam por aqui

Pelo respeito à diversidade cultural do Bom Retiro

A cultura coreana não pode atropelar a diversidade paulistana

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Douglas Nascimento
São Paulo (SP)

O aprazível e multiétnico bairro paulistano do Bom Retiro vivia em paz com suas diversas colônias até o ano de 2017 quando o então prefeito João Dória teve a patética ideia de rebatizar o nome do bairro para "Little Seul". Se usar um anglicismo para nomear um bairro de um país que fala e escreve apenas em português já é cafona o suficiente, o que dizer da vil tentativa de renomear o bairro uma vez que Bom Retiro era o nome da chácara que deu origem à região.

A ideia felizmente pegou mal e não foi adiante, mas plantou a semente entre coreanos – especialmente da área consular – que o bairro poderia ser mais identificado com a Coreia do Sul. Dos 50 mil coreanos e descendentes residentes no país, 90% deles residem em São Paulo e a maioria no bairro do Bom Retiro. Perfeito, não? Acontece que ali existem outras comunidades igualmente representativas economicamente e historicamente e que não podem sofrer este apagamento identitário que parece beirar a xenofobia. Residem e trabalham também judeus, italianos, gregos, húngaros, latino-americanos e tantos outros.

O rabino David Weitman na Sinagoga Kehilat Israel, a mais antiga do Estado de São Paulo e localizada no bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo. - Victor Moriyama/Folhapress

Basta andar pelo bairro e confirmar que ao contrário do que o consulado coreano tenta fazer crer o Bom Retiro não é coreano, é multiétnico. Ao caminhar você encontrará uma diversidade tão grande de pessoas que fica evidente que a grande beleza e alegria do bairro é justamente essa: a pluralidade de povos de diferentes cantos do mundo, marca aliás que é típica deste Brasil tão acolhedor aos imigrantes.

0
Restaurante Acrópolis na rua da Graça, um ícone da culinária grega no bairro paulistano do Bom Retiro. - Silvia Zamboni/Folhapress

Apesar desta diversidade étnica, ocorreu no último 16 de janeiro um ato que é um acinte à história do bairro, a mudança do nome de uma de suas principais ruas, a Prates, para Prates-Coreia. Se o nome duplo soa ridículo por si só, introduzir o nome do país asiático parece agradar somente ao cônsul Insang Hwang e à vereadora Sandra Tadeu (União Brasil) totalmente alheia da importância do nome Prates, cuja rua era a entrada da chácara de Fidélis Nepomuceno de Carvalho Prates um dos mais importantes e respeitados moradores da São Paulo do século 19.

intervenções no Bom Retiro
Placa de rua do Bom Retiro alterada de Rua Prates para Prates-Coreia. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

O nome duplo também está no calçadão que pateticamente o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, e o consulado resolveram chamar de praça Brasil-Coreia apenas para instalar um monumento que além de cafona despreza as demais culturas do bairro. A tal praça? Um cimentado de pouco mais de 10 metros quadrados.

Como se mudança de nomes não bastassem, espalharam pelas empenas cegas do bairro inúmeros falsos grafites onde mostram cenas da Coreia do Sul ou da tal amizade "Brasil e Coreia". Na falta, talvez, de grafiteiros optaram por soluções mais baratas que parecem enormes lambe-lambes coloridos.

arte de rua
Arte coreana instalada em empena cega de edifício no bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

A cafona apropriação cultural da identidade do bairro se dá também pela colocação de lanternas azuis e vermelhas, cores da Coreia do Sul, na porta de estabelecimentos comerciais do bairro, o que causa constrangimento até para alguns coreanos que tem negócios do bairro e discordam da imposição cultural que está sendo feita "goela abaixo", mas preferem não se identificar ou criticar para não se indispor com outras figuras da colônia.

As mudanças no que depender do apetite do consulado coreano não devem parar aí. Há projetos na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa que preveem a mudança de nome de outras importantes ruas do bairro e até, pasmem, da Estação Tiradentes do Metrô. Vereadores, deputados estaduais e o prefeito adoram a prática de mudança de nomes, afinal quem não quer os votos de uma comunidade de cerca de 50 mil potenciais eleitores?

intervenções no Bom Retiro
Na foto Insang Hwang, cônsul-geral da República da Coreia em São Paulo, e a vereadora paulistana Sandra Tadeu (União Brasil), memória paulistana desrespeitada. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Existe reciprocidade da Coreia do Sul?

Este colunista enviou uma série de perguntas ao Consulado Geral da República da Coreia em São Paulo, tão interessada na descaracterização da nomenclatura de ruas e praças do bairro, se existem iniciativas em Seul, capital do país, em batizar logradouros com nomes de São Paulo ou de personalidades paulistanas.

A resposta do consulado, resumindo, é que não cabe falar em reciprocidade pois são autoridades locais que decidem nomes de logradouros e que são poucos os brasileiros que residem na Coreia do Sul, cerca de 2000. Para os sul-coreanos do consulado, pelo visto, homenagem precisa ser de acordo com a quantidade de pessoas, não a reciprocidade, a amizade.

Monumento coreano
Monumento inspirado em JangSung, totens da cultural popular coreana antiga instalado em praça do Bom Retiro. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Demais colônias do Bom Retiro estão insatisfeitas

A iniciativa lamentável de mudar a história de um bairro esbarra também na xenofobia ao apagar a identidade de outros povos do Bom Retiro, o que tem criado uma sadia resistência de pessoas de outras colônias, que estão se movimentado para reverter as alterações já feitas e barrar mudanças futuras que causem a definitiva apropriação cultural do bairro por parte da comunidade coreana.

Benjamin Seroussi, do Centro Cultural Casa do Povo, de origem judaica e muito ativo na região é um dos que se opõe. Ele argumenta que o bairro sempre teve diversas comunidades estrangeiras, com essa ou aquela tendo maioria em determinados momentos da história, contudo nenhum jamais quis reivindicar para si exclusivamente a identidade do bairro.

Teatro
Na foto o Teatro de Arte Israelita Brasileiro, mais conhecido como Taib, na rua Três Rios bairro do Bom Retiro. Local também é sede do Centro Cultural Casa do Povo. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Já Fabio D’Urso, 53 anos, jornalista e cuja família de origem italiana é moradora do Bom Retiro há três gerações é mais direto "...Por parte da colônia Coreana, em especial dos seus líderes, existe um desrespeito para com a história do Bom Retiro e um desrespeito para com culturas que chegaram ao bairro anteriormente aos coreanos, que ancestralmente lançaram suas bases e fizeram a construção do Bom Retiro, sua história e tradições.".

Rodrigo Gutemberg, 37 anos, historiador e paulistano nato também é contrario "Quando vi a alteração do nome da Rua Prates para Prates-Coréia achei um absurdo. O tradicional logradouro, sofreu uma intervenção estética que é uma excrescência, um engodo. O Bom Retiro não é e nunca será um bairro coreano. O Bom Retiro é o bairro multiétnico paulistano, que jamais perderá a sua essência, com a presença dos próprios paulistas e dos antigos descendentes dos italianos, gregos, judeus e brasileiros.".

O que esperar do futuro do bairro?

Açougue
Açougue de coreanos na Rua Prates-Coreia, bairro paulistano do Bom Retiro. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

O consulado coreano diz, de maneira cômoda, que "o consulado não tem ingerência sobre as decisões tomadas pelas autoridades locais, que são soberanas" o que é uma ótima maneira de se isentar de qualquer crítica quanto o que está sendo feito no bairro. Todavia, se respeitassem as demais culturas que vivem por ali, seriam os primeiros a negar honrarias duvidosas como as que vem sendo feitas. O que, evidentemente, jamais aconteceu.

Ainda na mesma nota o consulado diz que "... Os legisladores têm o foco na integração e no reconhecimento das comunidades que compõem a cidade. A vereadora Sandra Tadeu propôs então o acréscimo do nome "Coreia" à Rua Prates, como forma de reconhecimento à contribuição da comunidade para o bairro e para a cidade como um todo.". Procurada a vereadora Sandra Tadeu não respondeu ao questionário enviado por este colunista.

Nomes de rua devem sair urgente da câmara municipal

intervenções no Bom Retiro
Praça que recebeu o nome de Brasil-Coreia no bairro paulistano do Bom Retiro, região central de São Paulo. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Os vereadores paulistanos já mostraram com inúmeros exemplos que não tem aptidão intelectual e ética ao batizar nomes de rua em São Paulo. Utilizam o artifício como querem, buscando influenciar através de atribuições de novos nomes o voto de paulistanos. No afã do pornográfico troca-troca de nomes desrespeitam a história da cidade, a memória de pessoas e a identidade dos paulistanos.

Atribuir nomes de rua deve ser atribuição da Secretaria Municipal de Cultura, onde um grupo de pessoas com instrução técnica aptas a lidar com a toponímia de nossas ruas, ou correremos o risco de daqui alguns anos as ruas de São Paulo mudarem seus nomes apenas para satisfazer o desejo mórbido de vereadores despreparados.

Finalmente, por mais que coreanos queiram e insistam o bairro do Bom Retiro jamais será coreano. Ele foi, é e continuará sendo de todos os brasileiros e imigrantes que vivem por ali.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.