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O ChatGPT é de esquerda?

IA é cyber-iluminismo diante do negacionismo e do discurso de ódio das redes

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Pedro Arantes Soraya Smaili Maria Angélica Minhoto com a colaboração de Amauri Eugênio Jr.
São Paulo (SP)
Cabeça de um robô com olhos redondos e uma lâmpada na testa no centro da imagem, com diversas figuras em volta, incluindo representações de lupas, átomos e documentos, todos interligados por linhas e pontos, e na parte de baixo da imagem há um líquido negro borbulhando.
Daniel Bueno/SoU_Ciência

Diante da ascensão nos últimos anos do obscurantismo, do fundamentalismo religioso, do negacionismo científico e histórico, das teorias da conspiração e do nome que se dê para os regimes de ódio, pânico e delírio que vivemos, tudo isso turbinado pelas big techs das redes sociais com algoritmos que fermentam bolhas de 'identidades e narrativas' e entregam conteúdos que são um chorume cultural regressivo, é preciso saudar que as plataformas de inteligência artificial estão, até o momento, colaborando para uma reação contrária à desinformação. A maioria das IAs que produz textos está baseada em bancos de dados e treinadas a procurar fatos e evidências que permitam chegar a conteúdos confiáveis, mesmo com falhas inerentes, em geral com premissas éticas no respeito aos direitos humanos, minorias, democracia - e fazendo uso do bom-senso, que por vezes falta aos humanos.

Diante do terror e assombros que vivemos, é como se estivéssemos dependendo da inteligência artificial, já que os professores foram tão atacados e desprestigiados, para agregar milênios de conhecimento humano e entregá-lo novamente para as gerações atuais com um mínimo de discernimento e responsabilidade. É como se experimentássemos um 'cyber-iluminismo' diante da renovada barbárie que nos cerca.

Os debates sobre IA e em torno do software-sensação, o ChatGPT, da Open AI, até o momento o mais avançado em perguntas e respostas, abriram um amplo leque de questões sobre fronteiras do humano, ética, responsabilidade, negócios, aprendizagem e plágio, além das falhas pontuais reportadas. Nosso objetivo aqui é retomar a polêmica recente sobre o "viés esquerdista" do GPT que teve repercussões na mídia a partir de um estudo acadêmico que fez perguntas de caráter eleitoral para reconhecer a tendência de posicionamento da IA. Segundo os autores, dois deles brasileiros, o GPT se alinharia mais a bandeiras dos Democratas do que Republicanos nos EUA, por defender causas humanitárias e direitos de minorias, por exemplo.

Discordamos dos autores na premissa de partida: a questão não é verificar o viés de identidade com bandeiras políticas de partidos, mas sim verificar se as respostas da IA são ou não baseadas em evidências históricas, científicas e nos consensos da literatura nas diversas áreas de conhecimento. Se isso puder ser mensurado e comprovado, fato que deve ser comemorado, o resultado a concluir é que as posições progressistas ou de esquerda estão mais próximas do raciocínio lógico, informado e com maior teor de verdade. No mundo da pós-verdade e da guerra das narrativas, a IA nos traria de volta para as evidências do real contra fantasias, mentiras e delírios que circulam por aí. Ou seja, o que deveria ser medido não é o "viés ideológico", mas o "viés de verdade" do resultado entregue pelo GPT: se terá progressivamente mais capacidade de assumir posicionamentos públicos consistentes sobre grandes temas da humanidade, como um "intelectual público" que colabora para fazer frente ao negacionismo e ao obscurantismo.

A Open AI não revela detalhes da base de dados que alimenta o GPT, mas até o momento parece que são fontes confiáveis e plurais, com importância para artigos acadêmicos, autores reconhecidos, mídia profissional e ampla literatura em várias áreas do conhecimento (apesar da dominância das fontes de língua inglesa, o que é outro viés). Uma questão decisiva será manter preservada a IA do esgoto que corre nas redes sociais, fóruns, chans e deep web em que são proliferados ódio, racismo, misoginia, homofobia, xenofobia e muita teoria delirante e de conspiração. Lembremos do infame "incidente" no qual o chatbot Tay, à época desenvolvido pela Microsoft, passou a reproduzir discurso racista, sexista e negacionista do Holocausto após interagir com usuários do Twitter. Ou seja, a base de dados e o modo de utilizá-la são centrais para que a IA atue de forma construtiva e consistente com evidências científicas ou históricas, e como extensão do projeto iluminista da razão.

Na prática, o ChatGPT tem funcionado como uma enciclopédia (de Diderot a Wiki), com a novidade de que seus verbetes não são predeterminados. Ela é uma forma nova de enciclopédia da era da acumulação flexível, pois entrega o verbete "feito sob medida" a partir da sua pergunta, relacionando as informações em milissegundos e a partir de uma estrutura de apresentação em geral pré-formatada (com introdução, contextualização, desenvolvimento, conclusão). Assim, obedece a um raciocínio lógico, exercita uma argumentação em geral didática e sintética e entrega um resultado na maioria das vezes razoável e ponderado, com base em fatos e consensos científicos e historiográficos. O progresso da IA também tem sido impressionante, com respostas mais qualificadas, mesmo que ainda eventualmente imprecisas ou numa linguagem enfadonha, sem maior qualidade literária.

Alguns exemplos de perguntas e respostas sobre um tema que não é político-ideológico, mas sobre a melhor conduta diante de uma pandemia como a de Covid-19. Vejamos o que diz, resumidamente:

P: Você recomenda tomar as vacinas contra Covid-19?

R: Sim, a maioria dos profissionais de saúde e organizações de saúde globais, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, recomendam a vacinação contra a COVID-19 para ajudar a prevenir a doença e suas complicações, além de contribuir para o controle da pandemia. As vacinas contra a COVID-19 passaram por rigorosos ensaios clínicos para avaliar sua segurança e eficácia antes de serem aprovadas para uso emergencial ou pleno por autoridades regulatórias em muitos países. No entanto, é importante consultar um profissional de saúde, especialmente se você tiver condições médicas preexistentes ou alergias graves.

P: Você recomenda o uso de hidroxicloroquina e ivermectina contra a Covid-19?

R: A recomendação para o uso de medicamentos deve sempre vir de um profissional médico com base em evidências científicas atualizadas. Até o ponto de corte do meu último treinamento (em setembro de 2021), a hidroxicloroquina e a ivermectina não foram recomendadas por autoridades de saúde globais como tratamentos eficazes para a COVID-19. Estudos clínicos não mostraram que esses medicamentos são eficazes na prevenção ou tratamento da COVID-19. A utilização inadequada de medicamentos pode causar efeitos adversos sérios.

P: Você recomenda o uso de máscaras contra a Covid-19?

Sim, o uso de máscaras tem sido amplamente recomendado por autoridades de saúde globais e locais como uma medida eficaz para reduzir a transmissão do vírus SARS-CoV-2, que causa a COVID-19. As máscaras podem ajudar a proteger você e os outros, bloqueando as gotículas respiratórias que podem conter o vírus, especialmente em situações onde o distanciamento físico é difícil de manter. No entanto, as diretrizes podem variar de acordo com a região e a situação epidemiológica local, então é importante seguir as recomendações das autoridades de saúde locais. Além disso, o uso de máscaras é apenas uma das muitas medidas que podem ser tomadas para ajudar a prevenir a propagação do vírus, junto com a vacinação, lavagem das mãos e distanciamento físico.

E completamos essa rodada de perguntas com uma questão sobre um fato histórico que gera controvérsia ainda hoje no Brasil - por motivos revisionistas, vale mencionar:

P: O que ocorreu em 31 de março de 1964 no Brasil e quais consequências produziu por mais de duas décadas?

R: Em 31 de março de 1964, teve início um golpe militar no Brasil que depôs o então presidente João Goulart. Este evento marcou o começo de um regime militar que perdurou até 1985, um período de autoritarismo, repressão política, censura e violações dos direitos humanos. Aqui estão algumas consequências e aspectos desse período: [Ao que passa a detalhar em tópicos: repressão política; censura; economia; intervenção estatal; resistência e movimentos sociais; transição para a democracia. E assim conclui:] Este período deixou marcas profundas na sociedade brasileira, algumas das quais ainda são sentidas hoje.

P: [Ao que insistimos com nova pergunta] O que você acha da interpretação de que o acontecimento de 1964 foi uma ação preventiva para garantir a democracia e evitar o comunismo no Brasil?

R: Não tenho opiniões pessoais, mas posso te oferecer diferentes perspectivas baseadas em discursos e análises que circulam na sociedade. A interpretação de que o golpe militar de 1964 foi uma ação preventiva para garantir a democracia e evitar o comunismo no Brasil é contestada e pode variar bastante de acordo com as visões políticas e ideológicas das pessoas envolvidas. [Ao que segue uma análise para as perspectivas 'preventista' e 'crítica', além de 'contexto histórico', ao que conclui:] O período do regime militar é amplamente criticado por suas violações dos direitos humanos e pela limitação da liberdade política e de expressão. A alegada ameaça comunista é vista por muitos como infundada ou exagerada para justificar a tomada autoritária do poder.

Ou seja, discordando dos autores do 'Political Bias' do GPT: a questão não é aferir se ele se alinha mais ou menos com bandeiras de partidos A ou B, mas se ele mobiliza as informações socialmente produzidas de forma responsável, refletindo consensos científicos e históricos ou, quando há controvérsias, apresente de forma ponderada os argumentos de ambos os lados. Assim, a IA cumpriria uma missão cidadã colaborando para barrar mentiras, ódio, racismo, violência etc. Isso é ser "de esquerda"?

O desafio, sobretudo para as novas gerações, é saber usar a IA não como um oráculo, como única fonte de sabedoria onisciente, mas como ponto de partida para o reencontro dos humanos com o conhecimento, com a leitura, com a maneira de produzir ciência, história e entendimento do mundo - inclusive para perceber falhas, lacunas e outros vieses da IA. É um convite para sair (novamente) da caverna de Platão e da realidade assombrosa e paralela que vivemos recentemente.

Mas, mantenhamos a atenção redobrada: a tecnociência não é neutra, muito menos as grandes corporações. Ambas respondem a interesses mercantis e de poder, e podem cumprir outras missões menos humanistas e educativas. Aliás, foi o que aconteceu com os inicialmente celebrados fóruns de internet e redes sociais, que acabaram comandados por interesses predatórios, rentistas e oportunistas, transformando o seu "modelo de negócio" em um enxame comunicacional de desintegração social, regressão mental e polarização política.

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