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Educação Antirracista já!

Ninguém quer essa vida, assim não Zambi!

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Maria Angélica Minhoto Soraya Smaili Pedro Arantes Com a colaboração de Ellen de Lima Souza
São Paulo (SP)
Mulher de pele negra, cabelos trançados azuis e brincos de búzios azuis claros, enquadrada do torso ao começo da testa, segurando um livro de capa vermelha aberto.
Babi Lopes/SoU_Ciência

Reconhecimento: termo que fundamenta e sustenta a Educação Antirracista.

Voltemos, por um instante, ao ato realizado em frente às escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, em 1978, o marco da criação do MNU – Movimento Negro Unificado. Um momento de concretização da reação à tortura e ao assassinato de jovens e trabalhadores brasileiros, inúmeros negros, durante o período da ditadura militar. Momento que se destaca, pois deixou evidente que a Educação em suas diversas ações, para o movimento negro, sempre foi eixo estruturante de seu processo de luta por emancipação social e projeto de nação.

Tal projeto de nação é enunciado na música Assim não, Zambi, composta por Martinho da Vila no ano de 1979, e entoada na voz que reverbera ancestralidade de Clementina de Jesus. A canção explicita a descrença no Estado e afirma uma crença. Crença onde estão depositadas as reivindicações políticas da população negra e periférica, pelo diálogo travado com a força mítica criadora Zambi, a única via de ter ouvida a sua voz e de afirmar a sua humanidade. A denúncia da violência do Estado é explicita em toda a música, revelando a cruel realidade dessa população.

O ano de 1979 foi ritmado, também, pela composição que se converteu em hino da anistia: O bêbado e a equilibrista, criação de Aldir Blanc e João Bosco e entoada na inesquecível voz de Elis Regina. A música denunciava diversos crimes do período da ditadura e mencionava nomes, como o de Hebert de Souza (Betinho). O ano de lançamento das músicas era o mesmo, contudo, o país e as condições objetivas de vida de seus cidadãos eram bastante distintos.

Embora as canções circulassem pelo país no mesmo período, o reconhecimento de cada uma delas como marco histórico e aporte cultural para a compreensão da história nacional não se deu da mesma forma. Em algum momento da Educação Básica, um estudante brasileiro vai se deparar, muito possivelmente, com o hino da anistia. Acertadamente, a música será apresentada como o contexto do país no processo de abertura política e construção de nossa ainda cambaleante democracia. Mas, dificilmente receberá em seu repertório o Assim não Zambi para apresentar um panorama do país sob a percepção de grande parte da população negra e periférica. E, desse modo, se afirma o racismo brasileiro, associando diferença como sinônimo de naturalização das desigualdades sociais.

Historicamente nestas terras, a naturalização das desigualdades se expressa em recordes de desumanização. Somos o último país do continente americano a abolir a escravidão e continuamos sistematicamente compondo as dez primeiras posições de maior desigualdade. Seguimos, "naturalmente", reafirmando, na base da violência, a tentativa de extirpar a população negra de nossa composição.

Isso é o que revelam os dados da UNICEF e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Vejamos: entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos de forma violenta, uma média de 7 mil crianças e adolescentes por ano. Porém, mais de 90% dessas vítimas são negras! Ou seja, as denúncias do MNU e de Martinho da Vila em sua composição continuam acontecendo agora, mesmo passados mais de 50 anos.

Dentre as reivindicações da população negra para o combate às desigualdades, o acesso e a permanência em uma educação pública, gratuita e de qualidade foram as principais. A Constituição Federal expressa tais conquistas, considerando que a educação passou a ser um direito subjetivo fundamental, assim como a prática de racismo um crime inafiançável.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1996, foi alterada pela Lei 10.639 que estabeleceu, em 2003, a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Portanto, nos últimos 20 anos, a Educação Básica no Brasil tem como obrigação legal enfrentar o racismo de fato. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana apontam que o reconhecimento das desigualdades raciais é passo fundamental para construir políticas de reparação por meio da Educação.

Como se percebe, uma Educação Antirracista não pode se resumir a uma declaração ou uma adesão por simples anúncio verbal. Deve se expressar em ações concretas de combate ao racismo e à discriminação, buscar reparação nos princípios éticos, políticos e estéticos que fundamentam a educação brasileira e permitir que nos eduquemos nas relações sociais. Nesse sentido, as universidades públicas que recebem estudantes e servidores oriundos de políticas de ações afirmativas precisam reconhecer que acolher essa população exige muito mais do que simplesmente abrir as portas.

O acolhimento implica necessariamente em reconhecimento, em combate às diferentes formas de racismo, em promoção de ações contra preconceitos e em possibilidade real de partilha e ocupação de lugares de poder e decisão. Engana-se quem pensa que apenas uma disciplina, no conjunto de outras que formam futuros profissionais - com destaque aos professores, resolverá a questão do racismo estrutural no país. É certo que todas as disciplinas e atividades precisam incorporar a pluralidade de referências teórico-metodológicos que reconheçam a diversidade de conhecimentos e experiências humanas para dar sustentação à necessária política de reparação, em toda a sua estrutura.

Mas não só, o fomento para pesquisa e extensão é outro ponto nodal: precisa exigir em todas as demandas uma perspectiva de Educação Antirracista e não apenas para fomentos exclusivos. Precisa exigir compreensão e diálogo com as diferentes realidades sociais.

Destaque especial fica por conta da ampliação do número de docentes negros, que junto com os demais devem trabalhar pelo combate ao racismo, uma responsabilidade que é de todas as pessoas e instituições.

Sobretudo, o sistema de educação superior deve reconhecer que avaliar a excelência da tríade ensino-pesquisa-extensão implica considerar a construção do pertencimento e da permanência de todas as pessoas em seu interior, deve consolidar diálogos horizontais com a sociedade e anunciar seu papel de produtor de conhecimentos voltados à melhoria da qualidade de vida da sociedade brasileira e indutor de políticas públicas. Uma porta aberta à população que reitere: "ninguém quer essa vida, assim não Zambi"!

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