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Descrição de chapéu Fies Enem

O triste fim do ministro da balbúrdia

Do Future-se à lata de lixo da história: uma reparação à educação brasileira

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São Paulo
Ilustração mostra homem de terno sentado e com papeis sobre a lata de lixo
Meyrele Nascimento/SoU_Ciência

Era uma vez um presidente, que venceu as eleições a partir da disseminação da desinformação, do discurso de ódio e de uma guerra, principalmente, travada nas redes sociais. Durante o seu governo ficou evidente a falta de compromisso com a educação e a ciência. A prioridade era armar a população e não educar. Foram quatro anos cometendo impropérios e levando o país ao caos, retrocesso e morticínio. Na ciência, temos falado exaustivamente, inclusive neste blog, do grau de negacionismo criminoso e de destruição que deixou, especialmente, durante os momentos mais duros da pandemia da Covid-19.

E era uma vez um ministro da educação deste governo. Vindo do mercado financeiro, interesse por educação e pelo setor público, ninguém tinha ouvido falar, mas ele foi nomeado. Aquele governo não tinha mesmo bons nomes para indicar. Teve cinco ministros, um mais desastroso que o outro. Um até que não chegou a tomar posse, devido à descoberta de fraude no próprio currículo. Outro que saiu algemado depois de negociar barras de ouro. E este, do qual tratamos, zarpou para os Estados Unidos com medo de ser preso. Dentre todos, o nosso personagem tornou-se uma unanimidade na educação como o pior ministro da história, simplesmente, porque sua principal ação foi atacar a educação, os estudantes, os professores, as universidades, os pesquisadores e os reitores.

Esse ministro, muitas vezes, fazia caricatura de si mesmo, happenings, standups, falas mais do que polêmicas e preconceituosas. Xingava, ameaçava, "trolava", no pior estilo "olavista" de guerra cultural. Mas, por trás dessas pantomimas e imposturas, havia uma missão bem concreta. Nosso personagem fazia parte de um grupo de ministros focado em destruir as instituições, direitos e políticas públicas, como o do meio ambiente, o da saúde (em meio a uma pandemia brutal!), a das mulheres e direitos humanos. Em nome do vale tudo, da desregulação e dos negócios privados predatórios, que ficaram representados pela grotesca frase "vamos aproveitar (em meio à pandemia) para passar a boiada". O que nos levou a falar, em artigo de Opinião na Folha, na "Boiada da Educação".

No caso da educação superior e para o referido ministro, a boiada passaria por duas porteiras: 1) o aparelhamento de órgãos e conselhos do MEC, com representantes do setor privado abrindo a porteira para o seu novo modelo de negócios predatório: o ensino à distância – o que correspondeu também a uma concentração de capitais no setor, quebra de pequenas instituições, demissão em massa de professores e conflitos com conselhos profissionais, insatisfeitos com a baixa qualidade da formação online (SoU_Ciência elaborou relatório sobre a expansão vertiginosa do EAD); 2) a introdução da lógica financeira na gestão, sustentação e definição de prioridades nas universidades públicas, incluindo a criação de fundos de investimentos, fundos imobiliários, naming rights, ataques às carreiras públicas estatutárias e outras formas de empresariamento das instituições – era a porteira do Future-se, que foi rejeitado pela imensa maioria das universidades e seus órgãos de representação (assunto destrinchado em livro publicado por Giolo, Leher e Sguissardi).

A rejeição não vinha apenas pelo caráter escancaradamente neoliberal das iniciativas, mas pelo ataque direto às próprias universidades e sua autonomia, o que lhe rendeu antipatia por provocações despropositadas e ingerências. De um lado a guerra ideológica, atacando universidades de excelência como lugares de "balbúrdia", "plantação de maconha" e "produção de drogas sintéticas", chamando os seus professores de "zebras gordas"; de outro desrespeitando a autonomia interna, na gestão e na representação, contrariando as eleições internas de dirigentes. Por fim, o impacto maior se deu com os continuados cortes no orçamento das universidades, de custeio e investimento, além do congelamento de vagas e cursos – ver matéria no G1 com nossos dados e o painel do financiamento que produzimos. Nesse período, as universidades federais chegaram a perder 100 mil matrículas.

Seu embate foi direto com os estudantes e suas entidades, a UBES, a UNE e a ANPG. Seu antecedente na universidade já indicava o ódio aos estudantes e perseguições violentas, a ponto de ligar para empregadores acossando alunos. Foram os estudantes, nas ruas, que fizeram as duas maiores manifestações contra o governo Bolsonaro, instigados pelos ataques do ministro. A resposta veio com a proposta de uma "nova carteirinha" dos estudantes, para tirá-la das entidades. O escândalo cresceu quando a denúncia de servidores de carreira do INEP escancarou que o MEC estava tentando acessar dados sigilosos dos alunos, contrariando a Lei Geral de Proteção de Dados. O ministro também minou a sobrevivência dos estudantes universitários com cortes generalizados de bolsas, sobretudo, na área de humanas, dizendo que "não quer mais sociólogo, antropólogo e filósofo com o meu dinheiro".

Do lado dos professores, o ministro incentivava que fossem filmados em sala de aula, mesmo contra à vontade, para serem denunciados por doutrinação ideológica, como uma ampliação panóptica e digital da antiga censura da ditadura. A pressão e ameaças sofridas pelo ensino superior rebaixaram bruscamente o Indicador de Liberdade Acadêmica (Acadêmic Freedom Index-AFI) do Brasil. O AFI é monitorado pelo Instituto V-Dem da Friedrich-Alexander-Universität, da Alemanha, em conjunto com o Scholars at Risk Network, com assessoria de 2,2 mil especialistas. Antes do Governo Bolsonaro, nos 30 anos de redemocratização brasileira, o índice AFI do Brasil era 0,95 (sendo 1,0 o máximo), um dos mais altos do mundo, equivalente ou superior às democracias ocidentais. Com Bolsonaro, o nosso AFI desabou para 0,41, similar a países com democracias sob ataque ou tiranias estabelecidas, como Hungria, Venezuela, Sudão, Índia, entre outros.

Em relação à educação básica, além de não implementar as metas do Plano Nacional de Educação, atrasar e colocar em risco a renovação do Fundeb (que foi salvo por mobilização nacional e votação no Congresso a despeito do governo), da falta de diálogo com as redes de ensino, do caos no ENEM, afetando 6 mil estudantes, o caso mais emblemático de seu desprezo pela educação foi ter jogado pela janela 1 bilhão de reais de recursos recuperados da Operação Lava-Jato, destinados à educação básica em todo Brasil.

A figura caiu não pelos seus malfeitos, mas pelo vazamento de áudios de uma reunião ministerial, em junho de 2020, quando chamou os ministros do STF de "vagabundos", e que "botava eles na cadeia", além de agredir os povos indígenas, negando seu direito de existência. Foi convidado a sair do governo e se refugiar nos EUA, assumindo um cargo no Banco Mundial, uma vez que voltar à universidade não era um desejo, dado seu desgosto pela educação.

Aliás, muitos se perguntam como uma Universidade Federal de prestígio aprovou em concurso uma figura sem qualquer mérito acadêmico, que possuía uma acusação de plágio e ausência de produção científica. Ele foi o único candidato para uma vaga aberta em área com poucos doutores, aprovado por nota mínima e sob críticas. Caso não entrasse, os alunos permaneceriam sem aula naquela disciplina. Foi feita uma escolha institucional, mas a história mostrou que não estaria à altura de ser professor.

Ao terminar seu período no Banco Mundial, não quis voltar aos bancos universitários, queria o governo do estado ou o Congresso. Foi barrado como candidato a governador, se candidatou a deputado federal e recebeu apenas 4 mil votos, quando projetava, em várias postagens nas redes sociais, alcançar 1 milhão de votos. Encerrada a eleição, nova oportunidade de retomar sua posição na universidade. Preferiu não voltar e, constatadas as faltas e o não comparecimento, ou seja, o abandono de cargo, foi exonerado da universidade e impedido de atuar no setor público federal por oito anos. Coincidentemente, o mesmo período da inelegibilidade de seu ex-chefe.

Assim termina a sua trajetória de professor e ex-ministro da educação. Terá ainda que responder por diversos processos judiciais em que é réu e ao desastre que produziu na educação brasileira. Cabe a nós não esquecer, por isso, retomamos todo este terrível histórico. Devemos sim, virar a página e seguir em frente, porém, com clareza e consciência do que causou, para que não mais aconteça. A educação é a arma fundamental da cidadania. Uma população bem formada está mais preparada para enfrentar a desinformação, o ódio e a injustiça.

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