Thaís Nicoleti

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Soja: gênero feminino ou masculino?

Personagens da novela das nove dizem o soja, no masculino

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Cauã Reymond em cena de 'Terra e Paixão'
O ator Cauã Reymond em cena de 'Terra e Paixão', novela das nove da Globo - João Miguel Júnior/Divulgação

Quem sempre disse "a soja" está correto, portanto não há com que se preocupar. Quem, no entanto, estiver assistindo à novela das nove da Rede Globo ("Terra e Paixão"), ambientada nas fazendas de soja de um grande produtor rural, ouvirá a todo o tempo "o soja", no masculino.

De fato, esse uso é comum entre os produtores e seu entorno, o que tem, sim, explicação. É que a entrada do termo no português se deu, ao que tudo indica, sob a influência do inglês "soya-bean", cuja tradução literal é "feijão-soja", este um termo masculino.

Em uma edição da Folha da Manhã, de 2 de setembro de 1942, encontramos um texto de Francisco Assis Iglezias, intitulado "Uma utopia de Henry Ford", de onde extraímos este fragmento: "O trabalho de Ford, nesse sentido, é, de acordo com o comentário do sr. Engel, a cultura da soja, aqui vulgarmente conhecida por feijão-soja, de procedência asiática". Nesse artigo, fazia-se referência ao uso da soja para produzir componentes plásticos para um automóvel. Interessa-nos, em particular, a referência ao uso popular do termo "feijão-soja" mencionado pelo autor.

Não parece difícil que desse uso tenha derivado o emprego do masculino "o soja", persistente até hoje nas áreas de cultivo do grão no Brasil. Convém notar, porém, que essa variante é local. Nos dicionários, "soja" é uma palavra feminina, e "feijão-soja", naturalmente, é uma palavra masculina.

Outros termos do português apresentam hesitação quanto ao gênero. É esse o caso de "usucapião", que, embora apareça mais frequentemente como palavra feminina, também é registrada no masculino. O dicionário "Aulete" e o "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa", da Academia Brasileira de Letras, estão entre as obras que consideram "usucapião" um substantivo de dois gêneros. "Aluvião" também admite os dois gêneros, embora, no dicionário "Priberam" (de Portugal), tenha apenas o registro de substantivo feminino.

Ao lado de termos que admitem os dois gêneros, há aqueles que passaram de um gênero a outro, como "mar" e "planeta", que, provavelmente sob a influência do francês ("la mer" e "la planète"), já foram termos femininos, mas, atualmente, são masculinos em português. Como se vê, mesmo entre línguas oriundas do latim, não há uniformidade de gênero.

Veja-se o caso da palavra "creme", masculina em português, mas feminina em francês ("la crème"). A famosa (e saborosa) sobremesa francesa, chamada "crème brûlée", é, ao pé da letra, um "creme queimado". Sendo "crème" um termo feminino em francês, "brûlée" segue a concordância francesa (o "e" final indica gênero feminino). Na hora da tradução, os editores de cadernos de gastronomia dos jornais sofrem para resolver o que fazer.

Em português, usa-se "creme" no masculino, mas jamais se traduz "brûlé" por "queimado"... Que fazer, então? Usar "creme" em português (masculino) e "brûlé" (em francês, mas no masculino, sem o segundo "e")? Essa solução aparentemente satisfaz a "lógica", mas um francês por certo acharia muito estranho "um creme brûlé". Há quem prefira aportuguesar o termo "brulê", tirando o acento circunflexo do "u" e passando-o para o "e" final. Dicionários não trazem a forma aportuguesada, o que abre espaço para a oscilação.

Outros termos de origem francesa, como "omelete" (fr."omelette"), "fondue" (francês), "patinete" (fr. "patinette"), "manete" (fr. "manette") ou "mascote" (fr. "mascotte"), sofrem oscilação quanto ao gênero no português. "Omelete", de início apenas feminino, hoje é tratado no Brasil como substantivo de dois gêneros e, em Portugal, permanece apenas feminino. "Fondue" mantém a grafia francesa, mas é admitido no português nos dois gêneros.

"Patinete" nos chegou como feminino, mas, no Brasil, houve grande insistência no seu uso como palavra masculina na imprensa. Hoje, os dicionários brasileiros admitem os dois gêneros; em Portugal, "patinete" continua sendo palavra feminina. "Manete", por sua vez, é feminino em Portugal e oscilante no Brasil. "Mascote", no entanto, é sempre um termo feminino – em francês e em português (dos dois lados do Atlântico).

Não são, porém, só os termos de origem francesa que apresentam no português oscilação quanto ao gênero. Um caso interessante de oscilação de gênero é o de "sanduíche", que vem do inglês "Sandwich", nome de uma cidade da Inglaterra. O termo surgiu por influência de John Montagu (1718-1792), conde de Sandwich, que, para não se levantar de uma mesa jogo nem mesmo para fazer refeições, teria inventado um jeito de se alimentar pondo fatias de carne entre fatias de pão ou torrada. No Brasil, "sanduíche" é palavra masculina e, em Portugal, é palavra feminina ("uma sanduíche" ou "uma sande").

Na tradução de termos de origem italiana – o que é particularmente visível no vocabulário da gastronomia –, surge oscilação quanto ao número. Em italiano, para fazer plural, não se usa o "s", mas o "e" ou o "i", portanto muitos dos nomes de massas que nos parecem estar no singular estão, na origem, no plural. É o caso de "penne", plural de "penna" (que quer dizer "pena" mesmo, a pena das aves).

É por essas e por outras que o aportuguesamento resolve muitos problemas. Veja-se o caso de "espaguete" (aportuguesado), substantivo masculino singular. Simples, não? Se quisermos escrever em italiano – para ficar mais "chique"? –, teremos de enfrentar o problema do plural. "Spaghetti", em italiano, é o plural de "spaguetto", que, por sua vez, é o diminutivo de "spago", que quer dizer "barbante". Um prato de "spaghetti", portanto, é, literalmente, um prato de "barbantinhos" – de massa, é claro. "Ravióli" (com acento, em português) está no singular, mas "ravioli" (sem acento, em italiano) é o plural de "raviolo".

Fato é que, com a facilidade de intercâmbio entre países e culturas, as línguas estão em contato e se influenciam mutuamente. Claro está que as línguas de países economicamente dominantes exercem muita influência sobre as demais, como é o caso do inglês. Na culinária, é curioso o exemplo da palavra "curry", do inglês, cuja origem é o português "caril". Em Portugal, as receitas trazem, em geral, "caril", não "curry". No Brasil, bem, preferimos o inglês.

Na gastronomia, o francês e o italiano ainda exercem considerável influência. O mesmo vale para o japonês, dado que a cozinha da terra do sol nascente já conquistou muitos paladares na porção ocidental do planeta. Diga-se, a propósito, que a palavra "soja" vem do japonês "shoyu" – traduzido por "molho de soja".

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