Thaís Nicoleti

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Excelências

A excelência (grandeza, superioridade) só tem valor se for, de fato, reconhecida

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A juíza Kismara Brustolin, da Vara de Trabalho de Xanxerê (SC), grita com uma testemunha durante audiência de instrução por videoconferência realizada em 14 de novembro - @diretodomiolo no X

Deu-se o fato há pouco mais de um mês na cidade catarinense de Xanxerê ("campo da cascavel", na língua indígena Kaingang), às 15h, numa audiência do Tribunal Regional do Trabalho realizada por videoconferência. O leitor, por certo, já sabe o que aconteceu, pois o vídeo correu pela internet mais rápido que um busca-pé. Não há quem não tenha visto uma juíza interromper a audiência para, aos gritos, exigir da testemunha que a tratasse como "Excelência".

A cena constrangedora se prolonga por alguns minutos, durante os quais a juíza insiste em receber o seu pronome de tratamento, enquanto o rapaz parece não compreender o que está acontecendo. Ele chega a usar o termo "doutora", mas nem assim o coração da magistrada amolece. Ao tentar entrar no mérito da questão, é bruscamente interrompido e chamado de "bocudo", que, na linguagem informal, é uma forma pejorativa de caracterizar quem fala muito.

A juíza chegou mesmo a proferir a frase "O que a senhora deseja, Excelência?" e, como se estivesse, nos tempos da palmatória, ralhando com uma criança indisciplinada, pôs-se a teimar em que o rapaz a repetisse. Como ele não lhe obedecesse, ela exigiu que ele fosse "deletado" da videoconferência e avisou que seu depoimento estava cancelado por "falta de respeito" – alguém cumpriu a ordem dela imediatamente, e a imagem do rapaz desapareceu do vídeo.

Graças à tecnologia, com um simples "clique", a testemunha evaporou, sem direito a qualquer tipo de reação ou protesto. Imaginemos que o fato tivesse ocorrido dentro de um tribunal: teria a juíza expulsado o rapaz da audiência com tanta facilidade? Também graças à tecnologia, é bem verdade, o vídeo se espalhou com rapidez pelas redes sociais e a juíza vai ter de prestar contas à Corregedoria. Já surgiu notícia de que ela é "bipolar" – pode ser verdade no caso dela, mas dizer-se "bipolar" é uma nova forma de justificar destempero ou eventual grosseria (em vez de pedir desculpas, a pessoa diz que é "bipolar" – o leitor já viu isso?).

O motivo de trazer esse episódio a este espaço, em que se discutem questões linguísticas, é naturalmente o uso das formas de tratamento. As gramáticas tradicionais em geral trazem uma lista de pronomes de tratamento, com a indicação de quem é chamado por um ou outro. Por exemplo, um reitor de universidade não é "você", mas "Vossa Magnificência", a um cardeal convém chamar "Vossa Eminência" e ao papa "Vossa Santidade". "Vossa Excelência", embora seja bastante formal, aplica-se a muita gente: vereadores, deputados, senadores, ministros, prefeitos, governadores, presidentes, secretários de Estado, embaixadores, marechais, generais, almirantes, brigadeiros, juízes.

Esses pronomes, iniciados por "Vossa", parecem estar na segunda pessoa do plural (vós), mas pertencem à terceira pessoa ("Vossa Excelência é bipolar?"). Não nos custa lembrar que "você" é uma redução do que um dia foi "Vossa Mercê". Assim, quanto à concordância, todos esses pronomes se comportam exatamente como o pronome "você" – eles têm forma feminina, mas servem para todo o mundo e estão sempre na terceira pessoa gramatical (do singular, "você", ou do plural, "vocês").

Segundo o dicionário "Houaiss", o uso da forma "Vossa Excelência" está "em obsolescência", ou seja, em via de desaparecer. A nossa juíza, portanto, talvez não devesse perder seu tempo a discutir com usos linguísticos. Todos vimos que o rapaz foi respeitoso e, se houve quebra de decoro, foi a de quem elevou a voz e chamou a testemunha de "bocudo"... As línguas são dinâmicas: palavras novas surgem a todo momento e aquelas que são abandonadas pelos falantes – por diversas razões – vão ficar bem quietinhas lá no dicionário. Aliás, as palavras antigas não são apagadas dos dicionários, nem mesmo os significados desatualizados – tudo fica lá registrado, mas o uso (coletivo) é soberano.

O episódio da juíza, tirante o seu aspecto grotesco, revela o desejo de distinção social, coisa muito comum. Ela quer ser reconhecida na sua posição de magistrada, o que lhe seria facultado pelo uso reverente de "Excelência" pelos demais (na audiência, só o juiz recebe esse tratamento). É uma formalidade. A etiqueta, no entanto, jamais recomendaria exigir do outro o tratamento formal – afinal, a excelência (grandeza, superioridade) só tem valor se for, de fato, reconhecida.

A forma "doutor", usada pelo rapaz, é empregada para médicos e advogados, embora, em algumas regiões do país, seja apenas um meio de demarcar distanciamento social, de modo que basta estar bem-vestido para merecer o tratamento. No ambiente universitário, há quem argumente que, rigorosamente, só os que defenderam tese de "doutorado" devem assim ser chamados. Ao mesmo tempo, muitos dos doutores (com título universitário) que fazem cursos de "pós-doutorado" andam por aí a se apresentar como "pós-doutores", mesmo que esses cursos não lhes confiram um novo grau. De certa forma, todos gostamos de ter nossa "excelência" reconhecida. Ou não?

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