Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite

Podcast da NY Magazine explora caso de abuso sexual psicodélico

"Power Trip" estreia com dose exagerada de personalismo e sensacionalismo

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São Paulo

Como já registrou este blog, escândalos de abuso sexual rondam o renascimento psicodélico . O assunto é sério e merece atenção, porém é duvidoso que uma mescla de sentimentalismo, personalismo e sensacionalismo seja a receita adequada para lançar luz sobre o problema, como vem de fazer o estreante podcast Cover Story.

Lançado pela New York Magazine, o podcast investigativo dedica sua primeira temporada a "Power Trip", série em inglês que explora o caso de abuso sofrido por Lily Kay Ross na condição de usuária de substâncias alteradoras da consciência. Ross é também a principal figura por trás do Psymposia, página sem fins lucrativos que promete "oferecer perspectivas de esquerda sobre drogas, política e cultura".

Ilustração em fundo arroxeado mostra figuras psicodélicas emaranhadas e desenhadas com traço fino
Ilustração Rodrigo Visca/Folhapress

Novos episódios serão lançados a cada terça-feira. Ouvi o primeiro, "I See a Sh*tshow" (que talvez devesse ser traduzido como "vejo m* no ventilador"), uma resposta de Ross para a pergunta do apresentador iO Tillett Wright sobre o que ela testemunhou na cena psicodélica. E não gostei.

Ross adota um tom quase meloso para narrar suas experiências com drogas na faculdade e o luto após a morte da mãe. Talvez funcionasse com uma personagem mais anônima, mas soa estranho para uma protagonista que milita na área apelar ao sentimentalismo pontilhado de frases de efeito calculado.

Ela se deu ao trabalho de incluir logo no primeiro episódio uma espécie de seguro politicamente correto: conta que foi desencorajada a fazer a denúncia porque poderia, sozinha ("singlehandedly"), pôr abaixo o renascimento psicodélico. Obviamente um exagero personalista, mas igualmente uma armadilha: quem não curtir sua viagem poderá passar por censor de um caso sério de abuso.

Roteiro e texto do áudio chegam a ponto de constranger, como no gancho final do primeiro capítulo em que Wright pede, com voz cavernosa, que Ross comece a narrar qual foi o abuso sofrido. Ela responde, com jovialidade quase humorística: "Estão prontos para apertar os cintos?"

Ouça no próximo episódio, claro. Mas já neste programa de estreia a dupla um tanto sensacionalista aponta para a figura de Françoise Bourzat, que o leitor já encontrou por aqui. É a terapeuta californiana de origem francesa exposta no famigerado ensaio de Will Hall (em inglês) que sacudiu o mundo da psicodelia, ele também envolvido sexualmente com Bourzat.

A quem estiver interessado em mais informação e menos sensação, recomenda-se ler o texto de Hall (em inglês). Outro trabalho imperdível é o ensaio de Clancy Cavnar sobre inclinações homofóbicas no campo psicodélico (disponível em português), e não só no passado distante, do qual este blog tratou também no post já mencionado.

Existe risco, como alertou Michael Pollan, de que casos de abuso sexual --que existem e talvez não sejam poucos-- se tornem a nova versão, agora com certo lastro na realidade, dos relatos sobre suicídios supostamente induzidos por LSD. Essas notícias fantasiosas foram cruciais para estigmatizar psicodélicos e justificar décadas de proibição que a pesquisa mal começa a reverter.

Por fim, se quiser saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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