Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite

Corrida do ouro psicodélico perde fôlego em 2021

Congestionamento, patentes e regulação freiam entusiasmo de investidores

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São Paulo

Em junho de 2021, a Atai Life Sciences levantou US$ 225 milhões (R$ 1,1 bilhão) em oferta pública inicial de ações, sucesso tido como indicador de excitação de investidores com o renascimento psicodélico na biomedicina. Um mercado mundial bilionário estava em formação para novos medicamentos psiquiátricos, e os primeiros a chegar se locupletariam.

Multiplicaram-se os alvos terapêuticos para compostos como MDMA, psilocibina, DMT, 5-MeO-DMT e LSD: depressão, estresse pós-traumático, ansiedade, dependência química, anorexia, TOC, enxaqueca... Não faltavam ideias e capital de risco para apostar nelas.

Os bons resultados em pesquisas e testes clínicos de fase 2 e 3 continuam jorrando, mas o entusiasmo investidor arrefeceu. Ao longo de 2021, as ações de várias startups começaram a cair, sinal de que pode ter começado uma fase de consolidação, após proliferarem empresas e pedidos de patentes.

Gráfico mostra queda de ações de empresas psicodélicas ao longo de 2021
Psychedelic Invest Index (https://psychedelicinvest.com/index/) - Reprodução

Há quem preveja o desaparecimento, em futuro próximo, de empreendimentos com valor de mercado inferior a US$ 300 milhões. Com a queda das ações, só meia dúzia de firmas, como a própria Atai, Compass Pathways e MindMed mantém o nariz acima disso.

Rick Doblin, pioneiro da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), avalia que muitas deixarão a corrida por falta de dinheiro. Nem todos os resultados científicos serão promissores o bastante.

Propriedade intelectual, fulcro desse modelo de negócios, representa um obstáculo à vista. A Field Trip, por exemplo, viu ações despencarem de US$ 8,29 a US$ 1,81 a unidade em um ano. Seu valor de mercado encolheu para US$ 109 milhões, e não por acaso ela esteve enrascada numa confusão com patentes.

A empresa solicitou patente de um tipo de triptamina (classe de droga que abarca a DMT da ayahuasca) por ela desenvolvido, FT-104. Antes da concessão prevista para esta terça-feira (1/3), veio à tona que outra companhia, Mindset, havia feito pedido similar, o que lhe daria prioridade, e a Field Trip retirou a demanda.

O pesadelo da FT se aprofundou com a iniciativa da agência americana de drogas DEA de incluir cinco novas variantes de triptamina na lista de substâncias banidas, incluindo uma em que a FT-104 se transforma ao ser metabolizada no organismo. Várias startups afetadas tentaram se unir para contestar a medida, mas a FT se recusou a juntar forças, defendendo à DEA só a sua inovação. O pedido suspenso foi comemorado no meio psicodélico como resultado do "carma" da Field Trip.

Outro caso rumoroso envolve um advogado do ramo de propriedade intelectual que conseguiu patentear o uso de DMT e 5-MeO-DMT em canetas vaporizadoras (cápsulas de "cigarros eletrônicos"). Evidente que não há invenção alguma aí, tanto porque essas substâncias já são usadas há tempos --ilegalmente, diga-se-- quanto porque muitos o fazem com as "vape pens".

Nove canetas vaporizadoras de maconha nas cores amarelo e cinza
Canetas vaporizadoras no Cannabis World Congress & Business Exposition em Nova York - REUTERS/Carlo Allegri

Compass Pathways é a empresa mais famosa a ter reputação abalada por causa de propriedade intelectual. Seu carro-chefe é a psilocibina de cogumelos "mágicos" para tratar depressão, há muito usada por povos tradicionais mexicanos e terapeutas alternativos.

A empresa já obteve várias patentes abrangentes cobrindo a "sua" psilocibina (COMP360) e aspectos corriqueiros de psicoterapias com base na substância. Em vias de iniciar um ensaio clínico de fase 3, ainda enfrenta resistência de defensores de conhecimento tradicional e de companhias ou instituições de pesquisa que também investigam a droga como antidepressivo.

O empresário Bill Linton, da firma de biotecnologia Promega e fundador do Instituto Usona (concorrente da Compass na psilocibina para depressão), criou uma página, Porta Sophia, só para combater essas patentes que fazem pouco caso de inovações e conhecimento prévios.

Seu parceiro na empreitada é o advogado patentário David Casimir, entrevistado pelo boletim The Microdose. A base de dados do portal tem milhares de documentos para consulta de oficiais de patentes, ao decidir sobre pedidos concretos, e conta com curadoria de dezenas de especialistas.

A Atai detém 21% da Compass, sendo um dos maiores investidores. Seu líder é Christian Angermayer, que se envolveu há um ano numa polêmica sobre patentes com o influenciador Tim Ferriss. Rick Doblin, da Maps, também pôs sua colher no angu da propriedade intelectual de psicodélicos.

"Na medida em que a Atai e a Compass buscam lucro bloqueando os outros por meio de patentes sobre processos [de sínteses] ou processos terapêuticos que não inventaram, elas fracassarão e vão desperdiçar seu potencial para ser uma força em favor de curas e de lucros", escreveu Doblin na época.

Em 16 de fevereiro passado, sua ONG Maps recebeu doação de US$ 500 mil da Atai Impact, braço filantrópico da empresa milionária destacada no início desta nota. O blog entrou em contato com Doblin para saber se o donativo era indício de alguma mudança nas respectivas posições a respeito de propriedade intelectual no setor.

"A doação não mudou minha visão e não reflete nenhum tipo de compromisso", reagiu o diretor executivo da associação. "A Atai reconhece que o progresso feito pela Maps beneficia todo o ecossistema psicodélico e que nosso trabalho pioneiro, ao lado de outras [organizações] sem fins lucrativos como Heffter, Beckley Foundation, Usona etc., construiu a fundação sobre a qual se criou a Atai."

Doblin esclarece não ser por princípio contrário a patentes, especialmente no caso de novas moléculas ou de aplicações inéditas das já conhecidas. Tampouco considera que a doação da Atai sinalize qualquer mudança de posição:

"A patente da Compass sobre a variedade polimorfa de psilocibina [COMP360] tem sido crescentemente desafiada, mas não creio que a Atai vá pedir à Compass que abandone a patente, a não ser ou até que percam na Justiça. Não penso que o custo de litigação seja um fator, mas sinto que a Atai e a Compass estão dolorosamente cientes do dano reputacional que estão sofrendo pela tentativa de patentear o polimorfo da psilocibina."

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"

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