Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Como entender a expansão da consciência mediada por psicodélicos

Artigo relaciona potencial terapêutico com experiência mística

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São Paulo

A maneira mais simples de compreender a frase "expansão da consciência" com psicodélicos implica aumento ou mudança qualitativa na autopercepção na própria pessoa que pensa e se observa pensando. Outra, menos óbvia, aponta para a atribuição, pelo sujeito, de mentes como a sua a outros seres animados e inanimados, raiz do misticismo meio anos 1960 que ainda ronda o renascimento psicodélico.

Capa de livro em cores vivas mostra cabeça de estilo oriental e o título "A Experiência Psicodélica"
Detalhe da capa do livro "A Experiência Psicodélica", editora Aleph (2022) - Reprodução

Não se trata mais do estereótipo de hippies que abraçam árvores, acreditam na reencarnação em animais e admitem a existência de duendes na floresta. No debate atual sobre a conveniência ou não de filiar ciência psicodélica ao sobrenatural, porém, o reconhecimento de atividade autoconsciente em seres não humanos, até mesmo nos inanimados e no universo, permanece na base da mescla incômoda.

O grupo de Roland Griffiths no Centro de Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins (JHU) tem tradição de estudos nessa confluência entre as experiências psicodélica e mística. A intensidade da segunda incrementaria inclusive o efeito terapêutico atribuído a substâncias como a psilocibina dos cogumelos "mágicos", segundo trabalhos pioneiros de Griffiths em 2006 e 2011.

O pessoal da JHU volta à carga, no periódico Frontiers in Psychology/Consciousness Research, com o resultado de uma enquete online reunindo 1.606 voluntários que atribuíam alteração de crenças após o uso de um psicodélico clássico (LSD, mescalina, psilocibina, ayahuasca, DMT ou 5-MeO-DMT). Bingo: os pesquisadores constataram que "escores mais altos de experiência mística estavam associados com aumentos maiores na atribuição de consciência".

Os participantes tinham de dizer se consideravam haver capacidade para experiência consciente em primatas não humanos, quadrúpedes, insetos, fungos, plantas, objetos naturais inanimados e até aqueles criados por humanos. Três respostas sobre crenças de cada voluntário foram registradas: antes da viagem, depois dela e na hora em que respondiam ao questionário.

Eis a variação nos percentuais de pessoas que mudaram de opinião após a experiência psicodélica, ou seja, o aumento no número daqueles que enxergavam consciência nestes seres e objetos:

  • primatas não humanos, como chimpanzés (de 63% para 83%; atualmente, 85%);
  • quadrúpedes (59%-79%; 82%);
  • alguns insetos (33%-57%; 60%);
  • alguns fungos (21%-56%; 62%);
  • plantas (26%-61%; 64%);
  • objetos naturais inanimados, como pedras (8%-26%; 29%);
  • objetos criados por humanos, como prédios (3%-15%; 17%);
  • o universo (34%-80%; 82%).

Não só aumentou em todos os casos o contingente daqueles que acreditam em consciência de animais, vegetais, rochas etc., logo antes e logo depois da imersão, mas também cresceram os percentuais dos crédulos no decurso entre a experiência psicodélica e o momento da participação na enquete. Em alguns casos, esse segundo intervalo era de meses ou anos, a corroborar a longa persistência da crença modificada.

Tentei, na época, participar da enquete por computador, como narrei aqui, mas tropecei na pré-condição de ter passado por uma alteração significativa de crença após viagem psicodélica. Mais precisamente, detive-me na implicância com o termo "crença", que parecia enviesar o estudo no sentido do misticismo.

Detalhe de página da internet com dizeres em inglês recrutando voluntários para enquete sobre psicodélicos e crenças
Imagem do site de enquete da Universidade Johns Hopkins sobre psicodélicos e crenças - Reprodução

Por que não "valores", "convicções", "pressupostos" (morais, éticos)? Muita coisa evolui em consequência dessas viagens de autoconhecimento, mas não forçosamente na direção de divindades, espíritos ou realidades outras.

Não são poucas pessoas que experimentam transformações significativas, até mesmo profundas, após um desses mergulhos na própria mente. Tornam-se mais tolerantes, flexíveis, abertas; gozam um sentimento de comunhão com a natureza, com a humanidade; reconciliam-se com o passado, seus traumas, mágoas, desafetos. Por que esse influxo de empatia e compaixão tem de ser necessariamente enquadrado na moldura mística?

Como já transpirou naquela nota do blog 17 meses atrás, a aura esotérica pode prevenir o espírito (sem trocadilho) de muitos psiquiatras, terapeutas e neurocientistas contra o potencial dos psicodélicos, contidos pelo receio de associação com o estigma propagado pelo proibicionismo dos anos 1970. Isso para não falar dos próprios portadores de transtornos mentais que poderiam, eventualmente, beneficiar-se de futuros tratamentos com psicodélicos.

O combo místico-psicodélico está enredado na trama messiânica tecida por gurus da contracultura como Timothy Leary. Dá para puxar uma ponta dessa meada com o livro "A Experiência Psicodélica", que teve tradução brasileira recém-lançada pela editora Aleph, em que Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert recorrem ao "Livro Tibetano dos Mortos" na composição de um manual para viajantes psiconautas e seus guias ("trip-sitters").

O livro de 1964 é um tanto datado, mas traz um ótimo prefácio do escritor Daniel Pinchbeck em 2007, de quem tomo emprestada esta citação para encerrar a conversa: "Não se trata de perdermos nossa cognição moderna em prol de um misticismo confuso, mas de integrar formas mais antigas e íntimas de conhecimento, capazes de nos ajudar na busca por uma relação mais equilibrada com o mundo humano e não humano ao nosso redor".

Falou e disse.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"

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