Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Questão indígena agita encerramento da Psychedelic Science 2023

Biraci Yawanawá desafia conferência com mensagem de paz, e grupo protesta no final

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Do enviado especial a Denver
Mulher com instrumento musical na boca e sua imagem multiplicada no telão ao fundo
Cantora se apresenta na sessão de encerramento da conferência Psychedelic Science 2023 - Marcelo Leite/Folhapress

Se o universo vai acabar com um murmúrio, a conferência Psychedelic Science (PS2023) terminou com estrondo. A tensão latente na maior convenção do ramo já realizada, entre o mal denominado renascimento psicodélico e o conhecimento tradicional sobre plantas e fungos psicoativos, movimentou o último dia do evento.

A reunião em Denver, Colorado, começou tranquila, no ritmo celebratório dos heróis da resistência científica contra o proibicionismo dos anos 1970, que estancou a pesquisa com modificadores da consciência por três décadas. Com 12 mil inscritos e 500 palestrantes, a PS2023 sinaliza que o estigma vai se desfazendo.

Sexta-feira (23) foi a vez de Stanislav Grof ser homenageado, como Roland Griffiths no dia anterior. Psiquiatra checo-americano, Grof desenvolveu a técnica de respiração holotrópica que manteve viva a investigação e a aplicação terapêutica de estados alterados durante a proscrição de MDMA, LSD, mescalina e psilocibina.

MDMA e psilocibina, principalmente, são as promessas de avanço mais que necessário na psiquiatria, cujos métodos e medicamentos são ineficazes para grande parte dos pacientes. Testes clínicos controlados vêm comprovando bons resultados contra transtorno de estresse pós-traumático e depressão, há duas décadas, mas ainda não foram aprovados para uso clínico.

Aos 91 anos, depois de sofrer um acidente vascular cerebral, falou com algum esforço, ajudado por sua mulher, Brigitte. Embora estivesse na plateia, apresentou-se no telão em conversa com Rick Doblin, a estrela da PS2023, que o qualificou como seu mentor desde 1972.

O psiquiatra relatou que, de início, suas pesquisas com LSD se davam sob a lente cristalina da farmacologia –como as substâncias agem no cérebro. Deu-se conta, então, de que as pessoas tinham viagens diferentes ainda que tomando a mesma dose de ácido; outras, dosadas sob condições idênticas, também faziam percursos disparatados. Não era só uma questão de química, concluiu.

Mas foi a química, ou melhor, os métodos analíticos da biomedicina, que tomaram a alma da convenção. A maior parte das apresentações, também as mais concorridas, se concentrou sobre o detalhamento dos efeitos das moléculas sobre o cérebro e o funcionamento de suas redes.

L;ider ind;igena de cocar aparece no palco e em dois telões
Nishiwaka Yawanawá (Biraci Brasil) fala na conferência Psychedelic Science 2023, em Denver - Marcelo Leite/Folhapress

"Quero parabenizá-los por isso, pelas pesquisas que fazem com nossas plantas", cumprimentou Nishiwaka Yawanawá, líder do povo indígena brasileiro de mesma denominação que vive perto da fronteira com Bolívia e Peru. Seu nome cristão é Biraci, pelo qual é mais conhecido.

Após alertar pesquisadores de que "as medicinas" são plantas sagradas para seu povo, há séculos, Biraci lançou a questão delicada: "Por que não nos convidam [para os estudos], nós que somos os verdadeiros conhecedores?"

"Vamos nos unir", propôs, para curar a sociedade humana em declínio. "Nós, povos indígenas, estamos de braços abertos."

Em seguida, lamentou a falta de respeito da pesquisa científica com os habitantes da floresta, humanos e não humanos. Criticou a produção de pílulas com ayahuasca ou com seus componentes psicoativos e contou que rezam para as plantas antes de tocá-las para usar como remédios.

"Vocês fazem isso? Ou fazem só por seu ego? Para ganhar prêmios internacionais? Quando nos respeitarem, aí sim faremos o bem para o planeta. Necessitamos nos reconectar com a nossa essência."

Menos diplomática foi a intervenção capitaneada por Angela Beers, psicóloga clínica que dá aulas na universidade budista Naropa (Boulder, Colorado) e se identifica como indígena-mexicana da etnia Chichimeca. Acompanhada de um jovem tocando tambor, o equatoriano Kuthoomi Castro, ela e seu grupo interromperam aos gritos a sessão final, planejada para nova e última consagração de Rick Doblin, o guru da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), que organizou a PS2023.

Doblin, ex-hippie que levantou US$ 200 milhões ao longo de 37 anos para levar a MDMA até a soleira da aprovação pela agência de fármacos FDA, repetia que não era hora de protesto. Surgiram seguranças no palco, mas vozes se levantaram na plateia pedindo que se desse a palavra para os manifestantes.

Doblin cedeu e pediu que subissem ao palco. "Vocês não são donos de nossa cultura", gritou Beers, referindo-se à apropriação da mescalina dos cactos peiote, por exemplo.

Kuthoomi, que na biografia oficial da PS2023 se apresenta como mestiço Kichwa e também vive em Boulder, estava à beira das lágrimas. Disse no microfone: "Vocês foram enganados. Isso [psicodélicos] não é renascimento algum, está acontecendo há muito tempo. Isto é capitalização, não um movimento de libertação".

Outra moça se dirigiu ao público, quando já se ouviam vaias, pedindo com calma: "Vocês têm de mudar o foco. O caminho da mudança não está em colonizar as medicinas de plantas, também".

Quando deixaram o palco, Doblin contemporizou. "Somos uma família, precisamos de todas as vozes." Mas reafirmou a trilha de regulamentação pela medicalização escolhida pela Maps, talvez a mais propícia a alcançar cobertura dos seguros de saúde para esses tratamentos.

"Nós precisamos do capital privado. Se formos realmente cuidadosos, podemos fazer isso juntos".

Dezenas de pessoas no palco com telão azul ao fundo
Equipe da conferência Psychedelic Science 2023 enche o palco do teatro Bellco - Marcelo Leite/Folhapress

Embora concorde com a importância da necessidade de inclusão indígena, a antropóloga Bia Labate, do Instituto Chacruna, criticou os manifestantes --e esclareceu que só conhece Beers e Castro, não os demais que subiram ao palco. "Protestos são naturais e saudáveis, e não deixa de ser irônico que a Maps, antes grande pioneira e revolucionária, agora encontre resistência e crítica", disse.

"Achei sua intervenção tola, e curiosa, pois denunciaram exclusão de comunidades indígenas locais, quando eles mesmos não fazem parte de nenhuma delas. Tampouco me parece que integrem alguma instituição indígena de boa fé – diferentemente de outros líderes indígenas reconhecidos e respeitados, incluídos na conferência. Ironicamente, omitiram que não foram excluídos, pois tiveram participação nela [como painelistas]."

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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