Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Antropóloga questiona setor psicodélico sobre exclusão indígena

Na conferência Psychedelic Science, Bia Labate e Roland Griffiths arrancam aplausos e lágrimas da plateia

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Do enviado especial a Denver
Pessoas passam diante de estande colorido em tons de rosa e lilás
Participantes da conferência Psychedelic Science circulam entre estandes - Marcelo Leite/Folhapress

Há muitas penas à vista na conferência Psychedelic Science 2023, a maioria em chapéus fedora, símbolo de feministas americanas. Poucas se veem em adereços indígenas, embora a todo momento povos originários sejam homenageados com palavras na abertura das palestras no Centro de Convenções de Denver, que abriga a maior convenção psicodélica já realizada.

A baixa presença de representantes das culturas que legaram psicodélicos como ayahuasca, cogumelos e peiote para a biomedicina foi assinalada por Bia Labate, antropóloga brasileira à frente da ONG Instituto Chacruna, de San Francisco (EUA). Com mais de 12 mil participantes circulando pelos corredores, os raros indígenas se tornam, para todos os efeitos, invisíveis.

Labate registrou que muita gente do mundo rico viaja para o Sul em busca de medicinas vegetais, movida não raro por fetichização, sem interesse genuíno em aprender com os locais. Ela fez recomendações sobre como demonstrar respeito real por essas comunidades tradicionais, e a uma delas pareceu talhada para o megaevento:

"Não ‘tokenizar’ [algo como apenas sinalizar reverência] pessoas, mas ouvir e cultivar confiança engajando-se em relações horizontais de longo prazo, não transacionais –em suma, ser um aliado e amigo e posicionar-se em solidariedade".

E lançou a pergunta incômoda: que cara teria o chamado renascimento psicodélico se todos que amam essas substâncias desafiassem o sistema de patentes e apoiassem a proteção de terras, patrimônio cultural e conhecimento indígenas?

Mulher vestida de preto discursa em pódio com telão azul ao fundo
Antropóloga brasileira Bia Labate discursa no palco principal da conferência Psychedelic Science 2023 - Marcelo Leite/Folhapress

Além do conflito mal resolvido entre propriedade intelectual e conhecimento tradicional, Labate criticou o reducionismo que encara psicodélicos como meras moléculas, pondo de lado o contexto. Reconheceu o mérito da pesquisa biomédica, que afinal lidera o ressurgimento psicodélico, mas ponderou que não será suficiente.

"A ideia dos testes randomizados e controlados se baseia na premissa de que se pode separar ‘efeitos da droga’ de set [disposição mental] e setting [contexto] e de medir tais efeitos por comparação com placebo para descobrir se essas substâncias realmente ‘curam’. (...) Essas fronteiras entre substância, set e setting são uma construção, uma ficção."

As reflexões da antropóloga, a primeira a falar quinta-feira (22) no teatro Bellco, palco principal da conferência, receberam vários aplausos. Ela elogiou, ainda, o pluralismo da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps), entidade organizadora com que colabora como especialista em educação e cultura, e celebrou a capacidade de seu líder, Rick Doblin, de conduzir a Maps a este momento decisivo.

"Somos parte de uma comunidade, uma família. E, como qualquer família, tem todo tipo de pessoas, não é perfeita, há problemas. Mas são os nossos problemas. Trabalhamos duro para estar aqui, hoje, e isto é verdadeiramente épico."

Logo depois de Labate subiu ao palco Roland Griffiths, um pioneiro de testes clínicos com psilocibina de cogumelos na virada deste século. A fala do pesquisador entrou em ressonância com a da brasileira, porque incendiou nos milhares de presentes esse sentimento de comunidade, de família psicodélica.

O teatro inteiro se levantou para aplaudi-lo antes mesmo que começasse a falar. Griffiths tem câncer de cólon em estágio avançado, diagnosticado há um ano e meio, e nunca fez segredo disso –ao contrário, tem dado entrevistas sinceras sobre o tema.

Homem idoso discursa com a mão fazendo sombra aos olhos
Pesquisador Roland Griffiths faz apresentação na conferência Psychedelic Science 2023 - Marcelo Leite/Folhapress

No palco do Bellco ele mostrou resultados de seu grupo na Universidade Johns Hopkins, em especial sobre correlações entre experiências místicas sob efeito de psicodélicos e o benefício terapêutico que vêm demonstrando. Mas não foi a ciência que o levou, e muitos na plateia, às lágrimas.

Griffiths contou como sua longa vivência com meditação e psicodélicos o tem ajudado a contemplar não a morte, mas a "preciosidade da própria vida". Repetiu várias vezes a palavra gratidão, numa delas "por esse espantoso mistério: a capacidade de estarmos conscientes de que estamos conscientes".

"Estou aqui com vocês, como nunca estive antes em minha vida", afirmou, numa espécie de despedida. Terminou o discurso com um convite: "Juntem-se todos nesta celebração".

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Capa do livro Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira (Fósforo Editora)
Capa do livro Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira (Fósforo Editora) - Arquivo Pessoal

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