Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Por que livrar a ciência psicodélica de sua bagagem mística

Pesquisadores criticam viés religioso em estudos e questionários psicométricos

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Homem branco de paletó azul escuro aparece em monitor de TV em entrvista para apresentadora negra em poltrona
Roland Griffiths, no monitor à esq., dá entrevista a Oprah Winfrey - Reprodução/Oprah Daily

Ao falar no palco central da conferência Psychedelic Science 2023, em 22 de junho, Roland Griffiths arrancou lágrimas de parte da plateia ao falar da preciosidade da vida em si mesma e convidar todos a celebrar o mistério de estarem cientes da própria consciência. Palavras inspiradoras de um luminar da ciência psicodélica diagnosticado com câncer de cólon avançado, tendo poucos meses de vida à frente.

Foi comovente, também, a participação de Griffiths no programa de Oprah Winfrey, poucas semanas antes da conferência em Denver, Colorado. O vídeo, que já teve 220 mil visualizações, pode ser assistido aqui.

Em retrospecto, fica evidente que a escolha de palavras buscava evitar o tom místico na contemplação da própria mortalidade. Havia um debate aberto no Centro de Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins (JHU), que Griffiths ajudou a fundar, mas nem todos presentes se deram conta disso.

O decano do centro chegou a projetar imagem, no palco em Denver, dizendo que o Questionário de Experiência Mística (MEQ), por exemplo, não implica chancelar crenças sobrenaturais. A ferramenta é muito usada em estudos com psilocibina, psicoativo presente nos cogumelos ditos "mágicos", como um trabalho pioneiro que Griffiths publicou em 2006, um dos responsáveis por levar ao grande público que estava em curso o chamado renascimento psicodélico para a medicina.

Em 2015, em conjunto com Stephen Ross e Anthony Bossis da Universidade de Nova York (NYU), Griffiths iniciou outro estudo clínico sobre efeitos da psilocibina desta vez com profissionais religiosos, como pastores e padres. A pesquisa, mesmo antes de publicada, se tornou alvo de críticas de Joe Welker, que ainda era um estudante de teologia em Harvard quando trabalhou na ONG Ligare, do reverendo Hunt Priest, um dos clérigos participantes com que Welker teve contato.

Welker postou nada menos que sete artigos sob o título "A Ciência Religiosa da Johns Hopkins" em sua página Psychedelic Candor (candura, ou sinceridade, psicodélica). O argumento é longuíssimo, mas pode ser resumido em quatro pontos principais:

- Griffiths, mesmo professando o que chama de espiritualidade secular, não inclui em suas pesquisas cuidados suficientes para impedir a projeção de convicções dos autores do estudo sobre seus sujeitos de pesquisa;

- Um colaborador destacado da pesquisa, Bill Richards, encarregado de preparar e supervisionar sessões com psicodélicos, tem por agenda reacender a centelha da "consciência universal" que brilhou no movimento hippie, tendo lançado em 2015 um livro intitulado "Conhecimento Sagrado: Psicodélicos e Experiência Religiosa";

- Alguns participantes, a exemplo de Priest, formaram grupos como a Ligare para instrumentalizar dados da pesquisa e formar centenas ou milhares de "embaixadores" em prol de um renascimento místico na cultura movido a psicodélicos;

- Um dos financiadores da pesquisa é a RiverStyx Foundation, que se apresenta como "uma ponte para as partes relegadas do self e da sociedade" dedicada a "honrar tanto a luz quanto a escuridão como dois lados necessários da mesma moeda".

Welker vê nessa configuração um terreno minado para conflitos de interesse e coabitação pecaminosa entre ciência e religião. Seria como se o grupo estivesse em busca de resultados empíricos sob medida para pôr no centro da ciência psicodélica e de seus efeitos terapêuticos mudanças de crenças que favoreçam o misticismo.

Placa com palavra "igreja" e seta em trilha
Comunidade rastafari Céu de Santa Maria de Sião, de Itapecerica da Serra, que usa o chá do Santo Daime - Zanone Fraissat/Folhapress-2015

Tal viés já havia ficado evidente para este blog quando tentei participar de uma enquete pela internet do centro sobre o assunto e fui excluído de pronto ao responder com "não" à primeira pergunta do questionário sobre ter vivenciado mudança em crenças após usar psicodélicos. Era ateu e continuei ateu, como escrevi aqui em 2020. Amostra enviesada, para dizer o mínimo.

Soou estranho, assim, encontrar seguidos tuítes com elogios a Welker da autoria de Matthew W. Johnson, um destacado colaborador de Griffiths no centro psicodélico da JHU. Quem seguir essa pista descobrirá que Johnson havia publicado uma visão dissonante sobre a ênfase mística na pesquisa já em dezembro de 2020, no artigo "Consciência, Religião e Gurus: Armadilhas da Medicina Psicodélica".

O texto dedica uma seção inteira à "introdução inapropriada de crenças religiosas/espirituais de investigadores e médicos", na qual Johnson afirma: "Assim como na prática secular de psicologia clínica ou psiquiatria, um paciente pode certamente aventar crenças e conceitos religiosos na discussão terapêutica, como Buda, Cristo, Kundalini e espíritos de plantas, mas não é papel do médico ou de cientistas introduzir tais conceitos".

Fica agora mais claro por que Griffiths buscou caracterizar, na conferência de junho, seu espiritualismo como meramente secular, não sobrenatural. Dele discordam, entretanto, outros pesquisadores psicodélicos que seguiram o veio aberto por Johnson e criticam o próprio conceito de "misticismo" operacionalizado nos estudos da JHU, como fizeram em abril Sharday Mosurinjohn, Leor Roseman e Manesh Girn.

Suas críticas estão no artigo "Experiências Místicas Induzidas por Psicodélicos: Uma Discussão e Crítica Interdisciplinar". O reparo principal aponta a ausência de perspectiva histórica, antropológica e de ciências da religião na mobilização de conceitos superficiais pela ciência psicodélica. Um intercâmbio com pesquisadores dessas áreas de ciências humanas deixaria evidente, por exemplo, que o próprio questionário MEQ está eivado de vieses culturais.

Na raiz dessa deficiência estaria um fundamento subjacente ao programa de trabalho da JHU, a noção de que todas as experiências religiosas e místicas procedem de um mesmo núcleo inerente ao ser humano, o que na literatura se batizou como perenialismo. Na prática, o que esse modo de pensar faria é projetar elementos da religiosidade cristã a outros credos e culturas.

São muitos os atributos da experiência psicodélica que podem ser entendidos como vivências místicas: dissolução do ego, sentido de imensidade oceânica, conexão profunda com o cosmos, a natureza e a humanidade, convicção de fazer parte de um todo maior que o eu etc. Mas tal interpretação não é obrigatória, como ao concluir que tais experiências equivalham a ver Deus ou vislumbrar a verdadeira realidade.

Uma das armadilhas da experiência mística (e psicodélica, neste caso), batizada por William James como "qualidade noética", é a convicção de que seus lampejos dão acesso a verdades genuínas, não mediadas pela empiria e plenas de significado. Tudo que ocorre à mente, nesse estado, parece fazer sentido e provir de uma revelação.

Nada garante, por certo, que tanto significado não passe de artefato surgido da atividade cerebral, quiçá aleatoriamente –embora percebido como verdade profunda. Essa propensão torna o viajante psicodélico altamente sugestionável.

Daí toda a contenção exigida de experimentadores e terapeutas que acompanhem o voluntário ou paciente. Suas próprias crenças e convicções, uma vez verbalizadas pela pessoa em posição de autoridade, podem facilmente terminar incutidas no psiconauta –sem mencionar o potencial para outra forma de abuso, sexual.

O artigo de Johnson inclui recomendações bem práticas. Uma delas é evitar imagens religiosas, como estátuas de Buda, na decoração da sala de sessões, ou conteúdos idem, como a Oração de São Francisco, cuja leitura chegou a ser sugerida a participantes de outros estudos na JHU. Bem mais complicado será filtrar dos instrumentos de pesquisa toda bagagem cristã-ocidental neles incrustado, a começar pelos questionários.

Se não fizer essa depuração e mantiver o vínculo suspeito entre efeito terapêutico e intensidade da experiência mística, a futura medicina psicodélica, se vingar, não estará tão distante quando deveria de igrejas que prometem a salvação pela fé.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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