Tiro. Furto. Facada.
Há pouca segurança no centro de São Paulo.
Férgusson era morador de rua.
—Tem muito exagero nessa história.
Há mais de quinze anos ele vivia na região da Cracolândia.
—E nunca me levaram nada.
Ele sorria com uma ponta de orgulho.
—Também, não iam achar nada o que roubar.
Férgusson puxava pela memória.
—Uma vez... faz tempo... tiraram o meu chinelo.
Ele se aninhou no cobertor.
—Mas depois devolveram.
Nem sempre é bom ter uma visão negativa das coisas.
—A maioria do pessoal aqui é de confiança.
Havia outros pontos a destacar.
—Depois, o centro está melhorando.
A Prefeitura anuncia.
Ficou pronto o novo projeto urbanístico de uma famosa esquina paulistana.
São João com Ipiranga.
Férgusson admirava as melhorias no local.
—Tem até estátua, cara.
Adoniran Barbosa. Paulo Vanzolini. Mestres do samba.
—Sempre tive a maior admiração por eles.
Férgusson cantarolava.
—Saudosa maloca, maloca querida...
Um quartinho era o seu sonho de consumo.
—Fazer o quê? A vida é assim mesmo.
Caía a noite sobre a capital paulista.
—Hora de uns golinhos... de um baseado... que ninguém é de ferro.
Já era alta madrugada quando Férgusson acordou.
Um vulto se destacava entre os anúncios luminosos.
—Nossa... dormi embaixo da estátua do Adoniran.
Foi quando ele sentiu um cheiro de cigarro.
Um pigarrinho. A voz rouca. Inconfundível. Característica.
—Férgusson... Férgusson...
O mendigo levantou a cabeça.
—Adoniran?
—Sou eu mesmo... quem mais?
—Nossa, seu Adoniran... sempre tive a maior admiração pelo senhor...
—Então. Me faz um favorzinho?
—Claro, mestre. O que vai ser?
—Primeiro, me traz uma cervejinha.
Férgusson tinha disponível um restinho de 51.
—Serve. E mais uma coisa.
—O quê.
—Me tira desse lugar desgraçado. E me leva para o Jaçanã.
Férgusson tentou deslocar a estátua do pedestal.
Esforço exaustivo.
Quando chegou a manhã, Férgusson se espreguiçou.
—Sonho mais estranho...
Caixas de fósforo, bitucas de cigarro e garrafas de cerveja se acumulavam ao redor da cama de papelão.
—Sujeirada.
Ele se dobrou o cobertor e se preparou mais um dia no Centrão.
—Até a próxima, Adoniran.
Em frente, a estátua de Vanzolini parecia sorrir.
É como diz o samba.
Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.
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