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'Há muito trabalho a ser feito para a segurança da edição genética', disse ganhadora do Nobel

Americana Jennifer Doudna dividiu premiação na área da química com a francesa Emmauelle Charpentier por desenvolvimento do método de tesoura genética

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Ricardo Zorzetto
Agência Fapesp

A bioquímica norte-americana Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia em Berkeley, é um dos nomes mais conhecidos por trás da técnica de edição gênica Crispr-Cas9 (pronuncia-se "crísper"). Em parceria com uma ex-colaboradora, a geneticista francesa Emmanuelle Charpentier, Doudna mostrou em 2012 que era possível simplificar a ferramenta e usá-la para alterar genes previamente escolhidos.

Pelo trabalho, as duas cientistas receberam o Prêmio Nobel de Química de 2020.

Em fevereiro deste ano, um estudo publicado na revista Science apresentou resultados promissores do uso da Crispr contra o câncerem seres humanos. No trabalho, pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, empregaram células de defesa geneticamente alteradas por meio da Crispr para tratar três pessoas com câncer – duas com mieloma múltiplo e uma com sarcoma. Nove meses após serem injetadas nos pacientes, as células continuavam ativas e capazes de atacar as células do câncer, embora os tumores não tenham sido completamente eliminados.

Ainda iniciais, resultados como esses animam os pesquisadores que veem na Crispr-Cas9 uma técnica revolucionária de edição de genes, mais simples, rápida e barata que as anteriores.

Na breve entrevista concedida por email em fevereiro, antes da publicação do estudo da Science e meses antes de receber o Nobel, Doudna falou sobre desafios técnicos e questões éticas relacionados ao uso da Crispr em seres humanos.

*

Considera certo que a Crispr será usada para tratar seres humanos ou pode haver contratempos?
Não dou por certo que a Crispr venha a ser usada para tratar doenças humanas. Certamente, vivemos um momento empolgante. É encorajador ver tantas pessoas de diferentes disciplinas se unindo para criar terapias que podem ajudar indivíduos com doenças para as quais ainda não há cura. Diante dessa promessa, é importante definir adequadamente as expectativas. Testes com terapias genéticas anteriores levaram a resultados malsucedidos e inesperados. Precisamos aprender com a história. Há muito esforço a ser feito para garantir que novas terapias de edição gênica sejam seguras.

Quão distante essa estratégia de edição de genes está da prática clínica?
Os ensaios clínicos podem levar vários anos. Esse tempo é necessário para avaliar a segurança e a eficácia da terapia. Depois que a primeira onda de testes clínicos for concluída, uma base será estabelecida de modo que a FDA [Food and Drug Administration, órgão regulador de alimentos e medicamentos nos Estados Unidos] e outros órgãos regulatórios possam avaliar as ondas subsequentes de tratamentos baseados na edição do genoma. Estamos perto de transformar a medicina de precisão em padrão de atendimento. Esse horizonte, porém, ainda está a anos de distância.

A Crispr é mais barata e simples e fácil de usar do que outras técnicas de edição gênica. O que precisa ser aprimorado?
Há dois desafios técnicos que se tenta resolver. O primeiro é o obstáculo ao reparo do DNA. A Crispr-Cas9 é um par de tesouras moleculares que corta as duas fitas do DNA. O passo seguinte é reparar o DNA de modo a produzir a mudança desejada. Para esta etapa, os cientistas confiam nas proteínas de reparo do DNA presentes nas células.

O problema é que introduzir uma nova sequência de DNA no local do corte nem sempre é eficiente. Para contornar o problema, alguns pesquisadores estão anexando outras proteínas ao sistema Crispr-Cas9 capazes de alterar a molécula de DNA sem a necessidade de cortá-la. O segundo obstáculo é fazer as moléculas de Crispr-Cas9 chegarem às células nas quais têm de agir, por exemplo, no cérebro, coração, pulmão. Para superar esse desafio, os cientistas estão empacotando-as em uma variedade de veículos diferentes que possam levá-las às células desejadas.

A Crispr foi proposta como técnica de edição de genes há oito anos e, após alguns testes com animais, começou a ser avaliada em seres humanos nos Estados Unidos e na China. Havia evidências suficientes de que fosse segura?
Não posso falar sobre a estrutura regulatória em vigor na China, mas os testes de segurança e eficácia realizados pela FDA [agência regulatória nos Estados Unidos] são um processo exaustivo e robusto. Como a edição do genoma por Crispr é uma tecnologia tão inovadora, os cientistas, inclusive eu, têm-se comunicado com a FDA para entender como o governo pode atualizar suas políticas de ensaios clínicos para avaliar de modo mais eficiente as terapias que usam CRISPR.

Em última análise, queremos garantir que os benefícios da edição do genoma cheguem a quem precisa, mas é necessário ter consciência de que não estamos indo rápido demais. A respeito dos ensaios clínicos em andamento nos Estados Unidos, os resultados experimentais anteriores haviam atendido os padrões da FDA, permitindo o início dos testes em seres humanos.

Já se teria cruzado uma linha ética, uma vez que, na China, a Crispr foi até supostamente usada para produzir bebês com genes editados? O que é necessário para que seu uso seja ético?
Um pequeno grupo de cientistas realiza testes eticamente questionáveis e He Jiankui cruzou uma linha ética ao usar a técnica em embriões humanos, levando ao nascimento de duas gêmeas. A grande maioria, porém, trabalha de maneira responsável. Nos Estados Unidos e na União Europeia, os ensaios clínicos são feitos sob supervisão rigorosa.

A história de He realça preocupações com as quais a comunidade internacional deve lidar para evitar ações negligentes semelhantes no futuro. As principais preocupações dizem respeito à segurança da técnica, ao consentimento do paciente e à transparência dos testes. As diferentes nações desenvolverão e implantarão a tecnologia Crispr com velocidade própria e seguindo marcos regulatórios próprios.

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