Garota pode ajudar a desbancar a tese de que só homens eram grandes caçadores da pré-história

Adolescente que viveu nos Andes há 9.000 anos foi sepultada com itens usados para abater mamíferos de grande porte

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São Carlos (SP)

Uma adolescente que viveu nos Andes há 9.000 anos pode ajudar a desbancar a velha tese de que os grandes caçadores da pré-história pertenciam exclusivamente ao sexo masculino. A garota foi sepultada com pontas de lança e outros implementos usados para abater e esquartejar mamíferos de grande porte.

Surpresos com a descoberta, que contraria o que se sabe sobre a divisão de trabalho entre mulheres e homens nos grupos atuais de caçadores-coletores, os arqueólogos que encontraram o esqueleto da moça resolveram revisar dados anteriores sobre o tema. Esse levantamento mostrou que a presença de mulheres enterradas com aparato de caça entre os mais antigos habitantes das Américas é relativamente comum, chegando perto de empatar com a de homens.

Os dados estão na edição desta semana da revista especializada Science Advances. Foram obtidos por pesquisadores dos EUA e do Peru e vêm do sítio arqueológico de Wilamaya Patjxa (sul do território peruano). A área fica quase 4.000 metros acima do nível do mar e, por isso, vem sendo estudada para entender como se iniciou a ocupação dos ambientes andinos de grande altitude.

Até agora, as escavações em Wilamaya Patjxa revelaram sepultamentos de seis pessoas. Entre elas, duas foram enterradas com pontas de pedra correspondentes a antigos projéteis.

“Certamente estávamos interessados em aprender mais sobre a organização social desse grupo, mas não esperávamos obter dados sobre a divisão sexual do trabalho —e não imaginávamos que a sepultura de uma caçadora fosse aparecer”, conta Randall Haas, pesquisador do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia em Davis e um dos autores do estudo.

Os cientistas desconfiaram que um dos esqueletos enterrados com pontas de pedra era de uma mulher por causa do fêmur delgado. Já o desenvolvimento dos dentes indica uma idade entre 17 anos e 19 anos no momento da morte.

Para tirar a dúvida quanto ao sexo, o grupo recorreu a uma análise da amelogenina, proteína presente no esmalte dos dentes. O que acontece é que existem diferentes formas de amelogenina, que variam entre os sexos porque o DNA que contém a receita para a produção da proteína está presente tanto no cromossomo X (presente no genoma de mulheres e homens) quanto no cromossomo Y (exclusivo do material genético masculino).

A análise indicou que não havia sinais de amelogenina associada ao cromossomo Y nos dentes do esqueleto —confirmando, portanto, que se tratava de uma mulher. A mesma técnica foi usada para confirmar que o outro indivíduo enterrado com pontas de pedra no sítio arqueológico era um homem (com idade estimada de 25-30 anos).

Dos artefatos achados na sepultura da moça, quatro são pontas de pedra que, para os pesquisadores, seriam usados em dardos delgados e compridos, despachados com a ajuda de um “atlatl” ou atirador de lanças. Esse tipo de instrumento, comum em vários locais da América pré-colombiana, funciona como uma alavanca, aumentando o alcance do arremesso.

Entre as outras ferramentas de pedra achadas na sepultura estão uma faca, raspadores e pigmento ocre (esses dois últimos provavelmente eram usados para processar o couro dos animais caçados). Completando o cenário, no sítio também foram encontrados ossos das prováveis presas: um veado andino conhecido como “taruca” (Hippocamelus antisensis) e a vicunha (Vicugna vicugna), parente das lhamas.

Completando o trabalho, a base de dados estudada pelos pesquisadores, abrangendo populações antigas das Américas entre o fim do Pleistoceno (a Era do Gelo) e o começo do Holoceno (algo entre 15 mil e 8.000 anos atrás, portanto), sugere que a garota andina não era um caso isolado. De 27 esqueletos cujo sexo em vida foi definido e cujas sepulturas continham armas para caçar animais de grande porte, 11 seriam de mulheres.

No entanto, e é aí que mora o mistério, esse equilíbrio desapareceu entre as populações tradicionais modernas, nas quais a caça é “tarefa de homem” praticamente em todos os casos. Por que as coisas teriam mudado do fim da Era do Gelo para cá? “É uma excelente pergunta e, a esta altura, não acho que as evidências favoreçam algum modelo em especial”, diz Haas.

Uma possibilidade, diz o pesquisador, é que a invenção do arco e flecha, que exigia mais força física e treinamento intensivo para ser manejado do que os dardos atirados por “atlatl”, tenha influenciado essa mudança. “Também parece possível que o surgimento de dietas mais diversificadas, menos baseadas na carne de grandes animais de caça e mais na coleta de recursos vegetais, tenha criado novos contextos para a divisão de trabalho. Creio que essa será uma área importante para pesquisas futuras.”​

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