Descrição de chapéu The New York Times

Você vive se perdendo? Talvez tenha crescido numa cidade de plano quadriculado

Quem passa a infância em locais como Nova York parece ter mais dificuldade para se orientar, diz estudo

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Benjamin Mueller
The New York Times

Quando era criança, em Chicago, Stephanie de Silva, 23, sentia que a cidade a ajudava a chegar aos lugares a que queria ir. As ruas tinham nomes direcionais, como "Oeste" ou "Norte", e geralmente se cruzavam em ângulos retos. Na dúvida, ela sempre conseguia se situar em relação ao lago Michigan.

Mas quando ela se mudou para Londres, onde hoje estuda ciência cognitiva, Stephanie de repente descobriu que sem usar um mapa em seu smartphone não conseguia encontrar o caminho para um restaurante a duas quadras de sua casa. Muitas das ruas eram tortas. Às vezes, pareciam não levar a lugar algum.

"Acho que as direções cardeais não existem aqui", ela comentou. "Estou morando aqui há seis meses e não sei para qual direção estou voltada."

Vista da North Rush Street (esq.) e da North State Street, no distrito de Gold Coast de Chicago
Vista da North Rush Street (esq.) e da North State Street, no distrito de Gold Coast de Chicago, uma das cidades que seguem um traçado urbano quadriculado - Edgar Silva - 28.nov.21/Folhapress

Cientistas do laboratório onde Stephanie estuda, no University College London, juntamente com colegas do Reino Unido e França, encontraram uma explicação: pessoas que passam a infância em cidades previsíveis, que seguem um traçado urbano quadriculado, como Chicago ou Nova York, parecem ter dificuldade em orientar-se com a mesma facilidade de quem cresceu em áreas mais rurais ou cidades de traçado mais complexo.

Publicadas na revista Nature na última quarta-feira (30), essas conclusões sugerem que o local onde as pessoas viveram na infância influi não apenas sobre sua saúde e bem-estar, mas também sobre sua capacidade de orientar-se mais tarde na vida. Como a linguagem, a navegação é uma habilidade que parece ser mais maleável numa fase da vida em que o cérebro das pessoas ainda está em desenvolvimento, concluíram os pesquisadores.

Os autores do estudo esperam que sua descoberta acabe levando à criação de testes baseados em navegação para ajudar a diagnosticar a doença de Alzheimer. Segundo eles, perder-se é algo que às vezes ocorre mais cedo no curso da doença do que problemas de memória.

Os pesquisadores criaram testes de navegação virtual para auferir declínio cognitivo, mas só podem interpretar os resultados quando sabem quais outros fatores influem sobre a capacidade das pessoas de encontrar seu caminho.

O estudo sugeriu que uma das forças que moldam a habilidade de navegação das pessoas é o tipo de lugares em que elas viveram na infância.

"O meio ambiente tem importância", explicou Hugo Spiers, professor de neurociência cognitiva no University College London e um dos autores principais do estudo. "O ambiente ao qual somos expostos exerce um efeito secundário sobre a cognição, que se manifesta até chegarmos à casa dos 70 anos."

Foi preciso uma série de acontecimentos improváveis —envolvendo uma empresa de telefonia celular, um YouTuber polêmico e um videogame criado a pedido— para gerar o grande conjunto de dados que alicerça o estudo.

Em 2015, Michael Hornberger, que estuda demência na University of East Anglia, na Inglaterra, ouviu falar de uma empresa interessada em investir em pesquisas ligadas à demência.

Tendo acabado de assistir a um workshop sobre o uso de games em ciência, ele propôs um videogame que o ajudaria a descobrir como pessoas de diferentes idades, gêneros e localização geográfica se sairiam em tarefas de navegação. Hornberger imaginou que um game desse tipo criaria pontos de referência para avaliar pacientes que pudessem estar nas fases iniciais da doença de Alzheimer.

Para sua surpresa, a empresa interessada financiou sua ideia. Era a Deutsche Telekom, dona de uma participação importante na T-Mobile. Conhecido como Sea Hero Quest, o game para smartphone envolvia conduzir uma embarcação para procurar seres marinhos. Para atrair jogadores, a empresa lançou uma campanha publicitária que incluía um vídeo de PewDiePie, o maior astro do YouTube na época, que mais tarde seria sancionado pela plataforma por usar linguagem antissemita.

Mulher usa óculos de realidade virtual para jogar "Sea Hero Quest"
Game de realidade virtual "Sea Hero Quest", que trabalha o senso de navegação dos usuários; foi produzido para ajudar os cientistas no estudo do mal de Alzheimer - Norbert Ittermann/Divulgação

Os cientistas esperavam que o game atraísse 100 mil pessoas na Europa ocidental. Os participantes testariam suas habilidades de navegação e, ao mesmo tempo, forneceriam informações demográficas básicas, por exemplo se tinham passado a infância em cidades ou na zona rural.

Em vez disso, mais de 4,3 milhões de pessoas participaram, gerando um banco global de dados sobre a capacidade das pessoas de se orientarem no espaço. "A gente tinha subestimado o mundo dos gamers", comentou Hornberger. "O que aconteceu superou todas nossas expectativas."

Apesar de sua simplicidade, foi demonstrado que o game prevê a capacidade das pessoas de se orientarem em lugares reais, incluindo Londres e Paris. Nos últimos anos, a equipe de pesquisadores tem usado os dados resultantes para provar que a idade vai erodindo lentamente as habilidades de navegação das pessoas e que a desigualdade de gênero é um indicativo de se homens terão desempenho um pouco melhor que mulheres.

O estudo mais recente enfocou uma questão que seus autores descreveram como mais difícil: será que as cidades, por mais que seu traçado possa ser quadriculado, exercem o efeito de aprimorar as habilidades de navegação das pessoas, pelo fato de lhes oferecer múltiplas opções de deslocamento? Ou as pessoas vindas de áreas mais rurais, onde as distâncias entre os lugares são grandes e as trilhas são tortuosas, desenvolvem habilidades de navegação superiores?

Para descobrir a resposta, os pesquisadores estudaram os dados de games de 400 mil jogadores de 38 países. O efeito verificado foi claro: as pessoas que relataram ter crescido fora de cidades demonstraram possuir habilidades de navegação melhores que as que cresceram em cidades, mesmo quando os cientistas incluíram idade, gênero e nível de instrução nos cálculos.

A única situação em que as pessoas que cresceram em cidades de traçado mais previsível se saíram melhor foi em níveis mais simples do videogame.

Os jogadores de diferentes nacionalidades tiveram desempenhos diferentes. Os habitantes urbanos de alguns países, como a Espanha, quase igualaram os moradores de áreas rurais, em matéria de suas habilidades de navegação. Em outros países, como Estados Unidos, as pessoas criadas em cidades estavam em desvantagem enorme.

Uma explicação, sugeriram os pesquisadores, é que nos países cujas maiores cidades são colchas de retalhos irregulares e complexos, como a Espanha, o layout caótico das ruas aguçou as habilidades de navegação das pessoas. Já em países conhecidos por seus traçados urbanos mais previsíveis, como os EUA, as pessoas vindas de fora das cidades estavam em vantagem maior.

"Quem cresceu numa cidade como Chicago, Buenos Aires ou Montreal —cidades de traçado muito axadrezado— não treina suas habilidades de navegação tanto quanto alguém que cresceu numa cidade mais complexa, como Londres ou Paris, onde as ruas são muito mais tortas e desiguais", disse Antoine Coutrot, cientista do Centro Nacional de Pesquisas Científicas francês e outro autor principal do estudo.

Para responder às objeções de que pessoas de fora das cidades só estavam tendo êxito porque o videogame é ambientado na natureza, os autores do estudo escreveram que suas conclusões foram replicadas com um grupo menor de participantes convidados a jogar um game diferente, City Hero Quest, com os mesmos objetivos, mas com um carro em lugar de um barco.

O estudo especulou que os ambientes mais complexos podem ajudar na formação de novos neurônios no hipocampo, uma estrutura cerebral importante para a memória. Mas os autores destacaram que as pessoas ainda podem aprimorar suas habilidades de navegação mais tarde na vida.

Alguns autores também notaram que o layout das ruas não é o único fator que dificulta ou facilita a navegação numa cidade. Pontos de referência visíveis podem ser importantes, mas são mais difíceis de quantificar para finalidades de pesquisa que uma malha viária.

Para amenizar as preocupações sobre privacidade e impedir que a ciência atrapalhasse o jogo, o game com seres marinhos evitou fazer perguntas específicas sobre o local onde os jogadores estavam, sua profissão ou seus meios de transporte usuais.

Com isso, os pesquisadores deixaram de ter acesso a algumas informações potencialmente relevantes sobre a criação dos participantes. Mesmo assim, alguns comentaristas encararam o projeto com ceticismo por razões de privacidade. Entre as incógnitas estavam como o GPS mudou as experiências de navegação das pessoas, se bem que Spiers tenha observado que os participantes mais jovens produziram resultados semelhantes aos das pessoas mais velhas.

Tradução de Clara Allain

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