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Peixe de 375 milhões de anos vira meme e culpado pelos problemas da humanidade

Ancestral do ser humano, o tiktaalik foi o primeiro peixe a deixar a água

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Sabrina Imbler
The New York Times

Talvez este não seja o pior dos tempos, mas certamente não é o melhor. O fim da pandemia não está à vista. O mundo está esquentando, os mares estão subindo e os ursos polares caminham para a extinção. E também tem os impostos, a semana de trabalho das 9h às 17h, a ameaça renovada de guerra nuclear.

Enquanto as pessoas procuravam alguém para culpar além de si mesmas e de toda a humanidade, um culpado surgiu na forma de um peixe de 375 milhões de anos, especificamente o tiktaalik. Os problemas modernos não existiriam se nossos ancestrais nunca tivessem saído da água, dizia uma tese. Os quatro arremedos de pés do tiktaalik fizeram do peixe um alvo fácil.

Os tiktaalik foram os primeiros peixes a deixar a água há 375 milhões de anos
Os tiktaalik foram os primeiros peixes a deixar a água há 375 milhões de anos - Zina Deretsky/National Science Foundation/Wikimedia Commons

Em 2006, a artista Zina Deretsky fez uma ilustração científica do tiktaalik para a Fundação Nacional de Ciência. Mais recentemente, sua representação do tiktaalik como um peixe prestes a deixar a água se tornou a base para uma série de memes.

Num deles, o peixe é recebido com armas e premonições medievais: "Se você vir uma besta horrenda evoluindo, empurre-a de volta". Os memes sugerem bater no tiktaalik com um jornal enrolado ou cutucá-lo com um galho –qualquer coisa para jogá-lo de volta na água e evitar que tenhamos que trabalhar e pagar aluguel.

Quando Deretsky viu pela primeira vez um dos memes usando sua ilustração do tiktaalik, achou que poderia sentir pena dele. "Nosso mundo está meio difícil hoje", disse.

Os cientistas talvez nunca saibam exatamente por que peixes como o tiktaalik e os primeiros tetrápodes –vertebrados com quatro membros– se mudaram para a terra, disse Alice Clement, bióloga evolutiva e paleontóloga na Universidade Flinders, no sul da Austrália. "Foi para procurar mais comida, escapar de predadores na água, encontrar um refúgio seguro para seus filhotes em desenvolvimento?", indagou Clement.

Seja como for, o legado deles é enorme. O grupo de peixes que se mudou para a terra deu origem a quase metade de todos os vertebrados atuais, incluindo todos os anfíbios, répteis, aves, mamíferos e nós. E, embora provavelmente não possamos traçar nossa árvore genealógica diretamente até o tiktaalik, "um animal muito parecido com ele foi um ancestral direto dos humanos", disse Julia Molnar, biomecânica evolutiva do Instituto de Tecnologia de Nova York.

Se o tiktaalik é nosso ancestral, então talvez responsabilizá-lo pelo caos que semeou seja uma expressão de amor.

A "era do sacolejo"

O tiktaalik ficou conhecido pelos humanos em 2004, depois que crânios e outros ossos de pelo menos dez espécimes apareceram em antigos leitos de riachos no Território de Nunavut, no Ártico. Os descobridores, uma equipe de paleontólogos que incluía Neil Shubin, da Universidade de Chicago, Ted Daeschler, da Academia de Ciências Naturais da Filadélfia, e Farish Jenkins, da Universidade Harvard, descreveram suas descobertas em dois artigos na revista Nature em 2006.

Um conselho de anciãos do Ártico conhecido como Inuit Qaujimajatuqangit Katimajiit foi consultado, e eles deram o nome ao tiktaalik, que na língua inuktitut significa "grande peixe de água doce que vive nas águas rasas". Os fósseis já foram devolvidos ao Canadá.

Os cientistas procuravam há décadas por um fóssil como o tiktaalik, uma criatura com membros em formação. E se outros fósseis exigiam um pouco de explicação, a anatomia óbvia do tiktaalik –um peixe com (quase) patas– o tornou o ícone perfeito da evolução, situado diretamente entre a água e a terra.

Fóssil de um tiktaalik encontrado no meio de rochas com 380 milhões de anos na ilha de Ellesmere, em Nunavut, Canadá por um trio de paleontólogos americanos. O fóssil é de um peixe com patas, com começo de um pulso e um pescoço
Fóssil de um tiktaalik encontrado no meio de rochas com 380 milhões de anos na ilha de Ellesmere, em Nunavut, Canadá por um trio de paleontólogos americanos. O fóssil é de um peixe com patas, com começo de um pulso e um pescoço - Ted Daeschler/AFP

Mesmo assim, o peixe fóssil atingiu um ponto delicado, surgindo logo após um julgamento na Pensilvânia que decidiu contra o ensino do criacionismo como alternativa à evolução, na biologia do ensino médio. Para Shubin, o desejo coletivo da sociedade de jogar o tiktaalik de volta na água é um alívio: você só desejaria jogar o peixe se acreditasse na evolução, "o que para mim é uma coisa linda", disse ele.

Quando Deretsky retratou o tiktaalik, o fez com a parte traseira submersa em água, já que essa metade do fóssil era um mistério na época. Mas nos anos seguintes os cientistas acumularam mais de 20 espécimes e viram melhor sua anatomia, incluindo sua pélvis, a barbatana traseira e as articulações do crânio.

Em particular, tomografias computadorizadas feitas por Justin Lemberg, pesquisador do laboratório de Shubin, permitiram que os cientistas espiassem o interior da rocha para ver os ossos. As varreduras geraram modelos 3D das partes invisíveis do tiktaalik. Alguns exames revelaram inesperadamente que ele tinha quadris maciços e uma nadadeira pélvica surpreendentemente grande. O peixe, em vez de se arrastar apenas com as nadadeiras dianteiras, como um carrinho de mão, parecia usar as quatro para se locomover, como um jipe.

Outros exames revelaram os ossos delicados de sua nadadeira peitoral. Ao contrário dos raios simétricos das nadadeiras dos peixes, os ossos das barbatanas do tiktaalik eram visivelmente assimétricos, o que permitia que as articulações se dobrassem em uma direção. "Achamos que foi porque esses animais estavam interagindo com o solo", disse Thomas Stewart, um novo biólogo evolutivo e de desenvolvimento na Universidade Penn State.

As nadadeiras do tiktaalik apresenta um fascínio especial para os pesquisadores que investigam os fundamentos genéticos das mãos humanas. Tetsuya Nakamura, biólogo do desenvolvimento evolutivo que espera manipular geneticamente um peixe-zebra para que ele desenvolva dedos, pendurou ilustrações da nadadeira do tiktaalik em seu laboratório: "A imagem ideal que queremos criar aqui", disse Nakamura.

A existência do tiktaalik era perfeita de outras maneiras. Havia muitos peixes no Devoniano Superior, uma versão pacífica da Terra quando o clima era agradável e ameno e os mares estavam cheios de vida. O tiktaalik pode ter passado seus dias vagando pelas margens dos córregos e pântanos repletos de plantas, disse Daeschler.

Essa era na Terra foi uma época estranha para ser um vertebrado, segundo Ben Otoo, estudante de pós-graduação na Universidade de Chicago que pesquisa os primeiros tetrápodes. Os vertebrados que se aventuraram em terra ainda estavam formando suas pernas terrestres. "Era muito galopar, se contorcer, deslizar, bufar, se debater", disseram eles. "É literalmente a era do sacolejo."

Outros peixes curiosos pela terra ou primeiros tetrápodes não pareciam menos ridículos. Antes do tiktaalik, o Panderichthys de crânio achatado nadava nas águas rasas. Mais tarde, o Acanthostega ostentava um conjunto de membros reconhecível, mas nada assombroso. E o Elpistostege, um peixe bastante semelhante ao tiktaalik, também ficou no limite entre nadadeira e mão.

Então, se os humanos modernos querem culpar o tiktaalik por nossos problemas, parece justo que culpemos todos os outros primeiros habitantes da terra –os já conhecidos e os que ainda não foram descobertos– por inaugurar a autoconsciência e os formulários do IR.

O peixe que lançou mil memes

Para ser justo, nem mesmo o tiktaalik adulto poderia ter previsto isso; não tinha um grande plano para colonizar a terra. "Não é como: 'Ah, é melhor ter membros'", disse Daeschler. "Ou que os animais viram coisas na terra e pensaram: 'Ah, eu preciso evoluir.'"

Também é um exagero dizer que os peixes aquáticos andaram para a terra de alguma forma significativa. Em vez disso, Daeschler sugeriu, o tiktaalik estava explorando novas oportunidades ecológicas na beira da água, vasculhando as águas rasas onde os peixes sem membros não podiam se mover.

E os pretensos combatentes do tiktaalik devem saber que um mero galho não seria suficiente para deter um adulto. Embora as reconstruções de sua face pareçam "inocentes e idiotas", segundo Stewart, o peixe era tão grande quanto uma pessoa. "Isso muda a maneira como você pensa sobre ele, de uma coisa meio frágil para um animal mais imponente na água", disse Stewart.

A arte não precisa espelhar a realidade para transmitir uma verdade. Os memes do tiktaalik não oferecem apenas um bode expiatório para o mal-estar moderno. Eles também nos pedem para imaginar um passado, presente e futuro diferentes. O que aconteceria se pudéssemos remapear o curso da história evolutiva?

"É uma ideia realmente poderosa, e não acredito que haja algo inevitável no caminho que a evolução tomou", disse Molnar sobre os memes. "Se você voltasse o relógio, acabaria num lugar completamente diferente", acrescentou ela, parafraseando o biólogo Stephen Jay Gould.

Então, se o tiktaalik significa arrependimento, também significa uma possibilidade radical. Para Otoo, o fóssil evoca um otimismo utópico, um lembrete de que a Terra já teve muitas identidades e terá muitas mais.

"O mundo natural que tendemos a pensar como sendo imutável e estático –você olha para as coisas e diz: 'Ah, é assim que as coisas são'", disseram eles. Mas 300 milhões de anos atrás os continentes estavam todos colados em um. Até a Terra poderá ser remodelada com o tempo.

E se a Terra pode mudar os humanos também podem, raciocina Otoo. "Através de várias combinações de decisões conscientes e inconscientes, fizemos o mundo dessa maneira", disseram eles. "E podemos fazer diferente."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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