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Salvos pelos porcos: espécie invasora ajudou a preservar crocodilos da Austrália

Réptil ficou em risco de extinção nos anos 1970, mas uma mudança na dieta pode explicar a sua recuperação

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Anthony Ham
The New York Times

A cena se repetiu inúmeras vezes nos pântanos e charcos do norte da Austrália: uma família de porcos ferais desceu até a beira da água para beber. Justamente quando os porcos estão mais vulneráveis, a maior espécie de crocodilo do mundo explode de sua camuflagem na água, fazendo os leitões voarem numa feroz exibição de dentes e poder. Até um porco adulto, que pode pesar 150 quilos, não tem chance.

"Os crocodilos comem o que for mais fácil, e os porcos ferais [que voltaram a viver soltos na natureza] são do tamanho perfeito", disse Mariana Campbell, pesquisadora da Universidade Charles Darwin, na Austrália, que estuda crocodilos de água salgada no norte do país. "Eles são caçadores bem preguiçosos. Se você é um crocodilo, o que é mais fácil? Você fica perto da margem e espera algumas horas por um porco? Ou vai caçar um tubarão, animal que pode nadar cinco vezes mais rápido que você?"

Frank Mazzotti, especialista em crocodilos e jacarés da Universidade da Flórida, concordou.

Crocodilo abre a boca ao receber um pedaço de carne
Crocodilo estuarino é alimentado na região do rio Darwin, na Austrália - Greg Wood - 2.set.2008/AFP

"Um porco descendo à beira da água é como tocar a campainha do jantar", disse ele.

Alguns cientistas esperam que os encontros entre os crocodilos e os suínos sejam o primeiro sinal de que o porco feral, espécie invasora que causou grandes danos ao terreno natural da Austrália, finalmente encontrou seu par. Os casos também podem ajudar a explicar por que os crocodilos estão indo tão bem, de acordo com um estudo recente que Campbell e outros pesquisadores publicaram na revista Biology Letters.

O crocodilo de água salgada, ou estuarino, vive há milhões de anos na Austrália. O porco selvagem chegou à ilha com os primeiros colonos europeus, no final do século 18. O primeiro é o maior predador da Austrália, que esteve perto da extinção no início dos anos 1970. O segundo se espalhou por quase 40% da massa terrestre da Austrália, e estimativas conservadoras sugerem que pode haver 24 milhões deles no país. Os cientistas culpam os porcos ferais e outras espécies invasoras pela perda generalizada de habitat e pelo fato de a Austrália ter a maior taxa de extinção de mamíferos do mundo.

Por mais divergentes que seus caminhos evolutivos possam parecer, a interação entre o crocodilo de água salgada e o porco feral, entre predador e praga, pode estar reescrevendo a complexa história do que acontece quando espécies não nativas dominam um ecossistema. Qualquer que seja a destruição ecológica causada por espécies invasoras, a relação entre crocodilos famintos e porcos vorazes na Austrália salienta as inesperadas consequências provocadas na natureza por espécies invasoras.

Surpresas semelhantes estão sendo observadas na Flórida e em outros lugares dos Estados Unidos, onde conservacionistas e autoridades da vida silvestre devem levar em conta espécies invasoras em suas tentativas de preservar a fauna local.

Porcos andam na grama em frente a plataforma de lançamento
Porcos ferais invadem área de lançamentos espaciais na Flórida, EUA - Joe Skipper/Reuters

Para entender se os porcos estavam ajudando a restaurar a população de crocodilos australianos, Campbell e seus colegas estudaram os isótopos de carbono e nitrogênio retirados nos últimos anos de amostras de ossos de crocodilos que habitam o porto de Darwin e o Parque Nacional de Kakadu. Então as compararam com amostras de museus que foram retiradas de todo o Território Setentrional da Austrália entre o final da década de 1960 e meados da década de 1980.

"Os ossos retêm uma assinatura que permanece ao longo da vida do animal. Se você quiser examinar a dieta de um animal em curto prazo, você estuda o sangue e o plasma", disse Campbell. "Se quiser algo um pouco mais antigo, analisa o colágeno ou a pele. Em longo prazo, você examina os ossos."

A análise óssea revelou que nos últimos 50 anos os porcos ferais se tornaram a principal fonte de alimento dos crocodilos. Isso marcou uma mudança fundamental na dieta da espécie de predadores mais antiga da Austrália, de presas principalmente aquáticas para animais terrestres. "Esperávamos ver alguma diferença na dieta", disse Campbell. "Mas ficamos impressionados com a diferença entre o que eles comiam naquela época e o que comem agora."

A história do crocodilo de água salgada e a mudança na dieta que levou à sua recuperação começou em 1971, quando o governo do Território Setentrional proibiu a caça ao réptil. No final da Segunda Guerra Mundial, havia cerca de 100 mil crocodilos de água salgada. Em 1971, eram apenas 3.000, e a espécie estava em risco de extinção.

Na década após a proibição da caça, um programa de abate reduziu significativamente o número de búfalos selvagens, outra espécie invasora. Isso, por sua vez, expandiu o nicho ecológico disponível para os porcos. Menores e mais tímidos que os búfalos, os porcos eram muito mais difíceis de abater e sua população crescia rapidamente. Em maior número e com alcance mais amplo, tornaram-se uma fonte de alimento fácil para os crocodilos.

Existem hoje cerca de 100 mil crocodilos selvagens de água salgada no Território Setentrional e, segundo Campbell, "se não fosse pela disponibilidade de porcos ferais no meio ambiente, a população não teria se recuperado ao mesmo nível em que está". O estudo observou que a recuperação do número de crocodilos de água salgada tem sido mais lenta em áreas onde não há porcos e onde não houve mudanças na dieta.

Campbell reconhece que há necessidade de mais pesquisas para entender se a predação por crocodilos de água salgada está tendo algum impacto sobre a população geral de porcos ferais. Mas os primeiros sinais são promissores.

Barreiras

"Acreditamos que os crocodilos estão fazendo a diferença ao criar barreiras ao deslocamento dos porcos selvagens", disse Campbell. "Você pode imaginar: se fosse um porco no Território Setentrional, provavelmente não tentaria atravessar o rio Mary porque não chegaria ao outro lado."

O estudo de crocodilos de água salgada australianos é um dos primeiros a confirmar que os predadores no topo da cadeia alimentar podem se beneficiar de grandes populações de espécies invasoras. Cientistas de todo o mundo há muito suspeitavam de relacionamentos semelhantes.

Do outro lado da costa do Golfo dos Estados Unidos, do leste do Texas ao norte da Flórida, por exemplo, o jacaré americano estava em declínio perigoso em meados do século 20. Em 1938, a nútria –um grande roedor semiaquático da Argentina– foi introduzida em fazendas de peles na Louisiana. O roedor escapou e se espalhou pelo sul do país, causando danos significativos ao hábitat do pântano costeiro.

Assim como o crocodilo de água salgada da Austrália, as populações de jacarés nos EUA cresceram com a ajuda de proteções legais, culminando na Lei de Espécies Ameaçadas de 1973. Mas sua recuperação em grande parte do sul foi quase certamente auxiliada pela presença abundante de uma espécie de praga.

"Onde as duas espécies ocorrem juntas, a nútria é o principal alimento da dieta do jacaré americano", disse Steven Platt, herpetólogo da Wildlife Conservation Society.

E animais invasores também ajudaram animais não crocodilianos.

Exploradores e colonos espanhóis introduziram porcos nos Estados Unidos como fonte de alimento no início do século 16. Hoje eles estão presentes em pelo menos 35 estados e, de acordo com um estudo do Departamento de Agricultura, os porcos ferais causam danos de US$ 1,5 bilhão a plantações, florestas, diques e campos de golfe todos os anos.

Porcos selvagens em fazenda na Espanha
Porcos selvagens em fazenda na Espanha - Luiza Fecarotta/Folhapress

Mas os porcos podem ter ajudado um animal criticamente ameaçado: a pantera da Flórida, da qual apenas cerca de 150 adultos e adolescentes sobrevivem na natureza. Estudos da dieta dos felinos descobriram que os porcos ferais são a principal presa da pantera.

"Os porcos podem ter salvado as panteras da Flórida da extinção", disse Mark Lotz, biólogo de panteras na Comissão de Conservação de Peixes e Vida Silvestre da Flórida. Os felinos sempre preferiram veados de cauda branca, que foram abatidos na década de 1930 para controlar carrapatos que adoeciam o gado. Com os cervos em declínio, "o único lugar onde as panteras permaneceram foi o sul da Flórida, onde havia uma população de porcos considerável", disse ele.

Caracol gigante

Aves de todo o mundo também mostraram a capacidade de lucrar com o surgimento de espécies invasoras. E algumas das consequências foram surpreendentes. Na Flórida, ao norte do lago Okeechobee, a disseminação do caracol-maçã-da-ilha, do tamanho de um punho, que escapou do comércio de aquários, provocou uma mudança notável não apenas na dieta, mas também no corpo do gavião-caramujeiro, ameaçado de extinção.

"As pessoas diziam há algum tempo que os gaviões-caramujeiros não conseguiriam comê-los porque os caramujos são muito grandes", disse Mazzotti. "Bem, os gaviões ficaram com bicos maiores, e a evolução ocorreu diante de todos. Os caracóis invasores estão tomando conta, e os gaviões estão apreciando."

Estudos posteriores confirmaram as descobertas sobre o tamanho do bico e descobriram que os gaviões-caramujeiros criados em zonas úmidas com caracóis-maçãs invasores estavam em melhores condições e tiveram uma maior taxa de sobrevivência num período de dez anos. "Também descobrimos que os gaviões fêmeas preferem cruzar com machos com bicos maiores", disse Robert Fletcher Jr., especialista em gaviões-caramujeiros na Universidade da Flórida.

Apesar dessas adaptações na dieta dos predadores, as espécies invasoras ainda estão vencendo. Na Austrália, em 2015, por exemplo, o então comissário de Espécies Ameaçadas do país disse à emissora nacional que "a Austrália perdeu 29 mamíferos desde a colonização europeia, e predadores ferais estão envolvidos em 28 dessas extinções".

A Flórida enfrenta problemas semelhantes, porque abriga uma combinação ideal de clima subtropical, um próspero comércio de animais de estimação e vários portos de entrada. O resultado, disse Ian Bartoszek, biólogo da vida silvestre na Conservancy of Southwest Florida, é que o estado tem "mais espécies animais não nativas estabelecidas do que qualquer país do mundo". Ou, como disse Mazzotti sobre a região dos Everglades: "Estou me preparando para chamá-la de Parque Nacional de Répteis Invasores Everglades".

Cobra com o corpo enrolado
Píton birmanesa confinada no zoológico de Palm Beach, na Flórida - Marc Serota - 11.abr.2006/Reuters

Pítons estrangeiras

Mesmo nos Everglades, há bolsões de boas notícias. Como as pítons birmanesas comem os mamíferos de médio porte dos Everglades que consomem ovos de répteis, é possível, de acordo com Bartoszek, que as tartarugas marinhas e o vulnerável crocodilo americano possam se beneficiar.

O impacto sobre os jacarés é menos claro. Embora ainda não haja dados para confirmar, "parece que o jacaré está segurando a linha, e o jacaré é provavelmente responsável por mais predação de pítons do que acreditamos", disse Bartoszek. "A píton encontrou seu nicho nos pântanos e nas áreas onde não há corpos d'água permanentes, onde os jacarés não patrulham. Mas nessas áreas de águas mais profundas e permanentes o jacaré, acredito, se fixou na píton e definitivamente está nos prestando um serviço."

Estas são, até agora, vitórias relativamente pequenas no esforço mais amplo para combater espécies invasoras. Segundo Bartoszek, 47 espécies de aves, 24 espécies de mamíferos e duas de répteis foram encontradas na barriga de pítons.

E nos Estados Unidos, assim como na Austrália, será preciso mais que crocodilos e jacarés para limitar essas pragas. Onde os predadores de ponta se alimentam de espécies invasoras, há muita incerteza. "Existem exemplos claros em que uma única espécie se beneficiou de uma espécie invasora? Certamente", disse Mazzotti. "Quais são as outras repercussões? Estamos muito menos certos sobre isso."

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