Descrição de chapéu Revista Pesquisa Fapesp

Equipe da USP tenta gerar porcos geneticamente modificados para fornecer órgãos a seres humanos

Os animais serão criados em instalações especiais, como a inaugurada em abril na Cidade Universitária

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Ricardo Zorzetto
Revista Pesquisa Fapesp

Em pé em uma sala escura, a veterinária e embriologista Ligiane Leme observava atentamente a tela de um computador, a única fonte de luz no local. Passava um pouco das 11 da manhã do dia 10 de abril e o monitor exibia a imagem de um óvulo imaturo, seguro por uma micropipeta próximo a uma diminuta agulha. Nos instantes seguintes, a embriologista Georgina Hastenreiter moveu a agulha com o auxílio de um joystick e fez uma perfuração mínima na célula, por meio da qual, com movimentos rápidos e precisos, extraiu todo o seu material genético. O óvulo sem núcleo foi depois preenchido com o DNA de uma célula adulta de pele de porco.

Naquele dia e no seguinte, Leme, Hastenreiter e a biomédica Tainah Moraes repetiriam o procedimento em outros 600 óvulos coletados em um abatedouro no interior de São Paulo. Acondicionadas em um meio de cultura, as células reprodutivas das porcas foram levadas para o Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco da Universidade de São Paulo (CEGH-CEL-USP), onde seriam usadas em mais uma etapa do desenvolvimento de um projeto ambicioso: a tentativa de produzir no Brasil clones de animais geneticamente modificados para fornecer órgãos a seres humanos e, assim, quem sabe, ajudar a reduzir a fila de espera por transplantes. Segundo dados do Ministério da Saúde, 71 mil pessoas aguardavam um órgão em abril.

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P22, uma das fêmeas híbridas das raças landrace e large white que recebeu o implante de embriões clonados produzidos pelo grupo da USP - Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa Fapesp

"O país tem o maior sistema público de transplantes de órgãos do mundo", lembra Ernesto Goulart, farmacêutico especialista em bioengenharia de tecidos e líder do projeto na USP. "Acreditamos ter a obrigação de desenvolver uma estratégia que permita a esse sistema se manter funcionando bem e atendendo mais pessoas", afirma o pesquisador.

O projeto é coordenado pela geneticista Mayana Zatz, do CEGH-CEL, e pelo cirurgião Silvano Raia, da Faculdade de Medicina (FM-USP). Teve financiamento inicial da empresa farmacêutica EMS e envolve quase 50 pesquisadores da universidade e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).

Ao final daqueles dois dias de abril, as pesquisadoras haviam obtido 280 embriões clonados, que foram transferidos para o útero de duas fêmeas híbridas das raças landrace e large white. Se tudo sair como o planejado, em meados de maio será possível saber se as porcas estão prenhes e de quantos filhotes. A expectativa é, após os quase quatro meses de gestação, testemunhar o nascimento de ao menos um leitão.

A torcida é grande, apesar da baixa taxa de sucesso da técnica. Desde que o grupo do embriologista britânico Ian Wilmut (1944-2023) gerou a ovelha Dolly (1996-2003), o primeiro mamífero clonado a partir de uma célula adulta, a técnica permanece altamente desafiadora e de pouca eficácia. Só uma pequena parte dos embriões obtidos por clonagem e transferidos para as fêmeas receptoras se implanta no útero e, destes, uma fração ainda menor (de 1% a 5%) completa a gestação e nasce.

No último ano, a equipe de Leme já produziu mais de 10 mil embriões clonados de porcos e realizou 20 transferências para as receptoras, com a inserção de cerca de 200 por vez. Todas as vezes as fêmeas ficaram prenhes e, em algumas, os fetos se desenvolveram por até 50 dias, quase metade de uma gestação suína.

Até o momento, nenhuma prenhez resultou no nascimento de um filhote, algo que os pesquisadores esperam que mude em breve, com os aprimoramentos feitos a cada nova tentativa. "No Brasil, há tempos é feita a clonagem de bovinos, mas essa tecnologia ainda não foi estabelecida para suínos", conta Goulart. "O uso da técnica em porcos é mais limitada, devido a algumas características dos gametas da espécie", explica Leme.

A dificuldade de dominar a técnica é geral. Cerca de 15 grupos em ao menos oito países tentam clonar porcos geneticamente modificados para obter órgãos, mas só três conseguiram. Um é o da empresa eGenesis, nos Estados Unidos, fornecedora do rim transplantado em março para um homem com insuficiência renal.

Tudo pode afetar a obtenção do clone: a temperatura de manipulação das células, a incidência de luz (por isso a sala é escura), a sincronização entre o estágio de divisão da célula doadora do DNA e o do óvulo, além da fase do ciclo reprodutivo em que os embriões são transferidos para a receptora e do número de embriões efetivamente implantados no útero. Suínos têm de 20 a 25 filhotes por ninhada e, se a quantidade de embriões for muito menor, a gestação não segue adiante.

Em abril, a equipe da USP passou a contar com a consultoria do veterinário e embriologista brasileiro Luis Queiroz, que auxiliou o desenvolvimento dos animais da eGenesis, para aprimorar a clonagem.

Obter os primeiros porquinhos clonados será a confirmação de que o grupo da USP finalmente dominou a técnica, passo essencial e complementar a outro necessário para obter órgãos mais compatíveis com os dos seres humanos: a edição genética das células.

Apesar das diferenças genéticas e de outras incompatibilidades, os porcos têm sido os animais doadores de escolha nos últimos anos porque têm órgãos com tamanho e funcionamento semelhantes aos dos humanos, além de serem domesticados, se reproduzirem bem em cativeiro e originarem ninhadas grandes em poucos meses.

Há cinco anos, antes das tentativas de clonagem, Goulart e os biólogos Luiz Caires e Luciano Abreu Brito haviam começado os primeiros testes para alterar a configuração genética das células suínas e, assim, reduzir um dos principais riscos do transplante: a rejeição.

Resultado do ataque do sistema de defesa do receptor ao novo órgão, a rejeição também pode ocorrer quando os doadores são seres humanos. Mas costuma ser mais frequente com órgãos de outros animais, o chamado xenotransplante, como ocorreu em experimentos feitos com órgãos de macacos antes de se dominarem as técnicas de manipulação gênica.

Instalados no Laboratório de Edição Gênica do CEGH-CEL, em uma sala vizinha à de clonagem, Goulart, Brito e colaboradores empregam duas técnicas para manipular o material genético das células a serem usadas na geração dos clones. Uma é a ferramenta de edição gênica Crispr-Cas 9, que ganhou notoriedade internacional recentemente por ser barata e de uso fácil.

Com ela, a equipe da USP já conseguiu desativar os três genes normalmente desligados nos experimentos de xenotransplante: o GGTA1, o CMHA e o B4GALNT2. Eles codificam enzimas que atuam na produção de açúcares da superfície das células suínas que são reconhecidos pelo sistema imunológico humano e disparam a rejeição hiperaguda: a destruição do órgão nas primeiras horas ou dias após o transplante, causada por anticorpos presentes no sangue do receptor. "A inativação desses genes é imprescindível", conta Brito.

Mais recentemente, eles começaram a usar uma segunda técnica –a transposon piggybac, que emprega um trecho de DNA capaz de cortar a dupla fita do material genético celular e inserir novos segmentos– para tentar acrescentar sete genes humanos às células suínas.

O objetivo é gerar células –e, consequentemente, embriões e órgãos– com características mais próximas às do ser humano para driblar o sistema de defesa e evitar a produção de novos anticorpos, causa da rejeição aguda, que pode ocorrer meses após o transplante. "Todo processo de edição genética, em especial o acréscimo de genes, é delicado. Representa uma agressão à célula", esclarece Brito.

Até abril, os pesquisadores já haviam conseguido inserir os genes em fibroblastos, as células da pele que se mostraram mais apropriadas para a clonagem, mas ainda não sabiam se eles haviam sido incorporados no trecho desejado do genoma nem se permitiam a produção de níveis adequados das proteínas que codificam. Um experimento que planejavam para as semanas seguintes era sequenciar o DNA dos fibroblastos para ver o ponto de inserção dos genes.

"Quando a clonagem der certo, queremos estar prontos para testar as células editadas", afirma Goulart, que espera obter, além de rins, córneas, coração e pele para xenotransplante.

Os porcos clonados e as proles resultantes do cruzamento entre eles serão mantidas em duas instalações especiais, projetadas para a criação de animais doadores de órgãos para uso humano. A primeira, com capacidade para até dez animais, foi inaugurada em 23 de abril no campus da USP em São Paulo. Outra, maior, está em construção no IPT. Após o nascimento, os animais ficarão sob os cuidados da XenoBR, startup resultante do projeto, que fornecerão os órgãos para os testes clínicos.

O avanço das técnicas de edição gênica da última década, com a promessa de redução do risco de rejeição, reavivou o interesse médico por órgãos de origem animal –uma busca antiga, documentada desde ao menos o século 17. De 2022 para cá, ao menos três doentes graves receberam como alternativa derradeira (tratamento compassivo) o transplante de um órgão suíno.

Em 7 de janeiro de 2022, a equipe dos cirurgiões Bartley Griffith e Muhammad Mohiuddin na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, implantou um coração suíno em David Bennett Senior. Com 57 anos e portador de uma doença cardíaca terminal, Bennett não era elegível para receber um coração humano. "Era morrer ou fazer esse transplante", disse Bennett em um comunicado durante a recuperação.

Fornecido pela empresa Revivicor, o coração havia sofrido alterações em dez genes e funcionou bem até o 47º dia. Depois, foram necessárias medidas de suporte e Bennett morreu no 60º dia após o transplante. O órgão não tinha sinais de rejeição inicial, relataram os pesquisadores em 2022 na revista The New England Journal of Medicine.

Uma análise posterior, publicada na revista The Lancet, identificou lesões compatíveis com uma rejeição tardia, decorrente da produção de anticorpos contra as células suínas. Em setembro de 2023, a equipe de Maryland realizou um segundo transplante de coração suíno, dessa vez, em Lawrence Faucette, 58, que morreu seis semanas após a operação.

O xenotransplante mais recente ocorreu em março. Médicos do Hospital Geral de Massachusetts, entre eles o cirurgião brasileiro Leonardo Riella, implantaram um rim de porco geneticamente modificado em Richard Slayman, de 62 anos. Com falência renal, Slayman teria de aguardar por anos para receber um órgão humano por causa da fila. Ele apresentou um episódio inicial de rejeição que foi controlado. Na alta no início de abril, segundo os médicos, o órgão funcionava bem.

A expectativa da equipe é que o órgão se mantenha saudável por um tempo. Fornecido pela eGenesis, o rim foi extraído de um animal submetido a 69 alterações genéticas. Foram desativados os três genes que codificam os açúcares que recobrem as células suínas e 59 vírus encontrados no genoma dos porcos que, aparentemente, não lhes causam danos, mas poderiam ser reativados e infectar seres humanos.

Também foram incorporados sete genes para tornar as células suínas mais compatíveis com as humanas. Macacos-cinomolgo (Macaca fascicularis) que receberam os rins da eGenesis viveram por até dois anos, segundo estudo publicado em 2023 na Nature.

Em entrevista ao canal GloboNews, Riella disse esperar que esses rins se saiam melhor em humanos, uma vez que não foram modificados para ser compatíveis com o organismo de macacos.

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