Mais antigo fóssil de esqueleto articulado já identificado ajuda a entender evolução dos animais

Corumbella habitou os oceanos num dos momentos mais enigmáticos da história da vida na Terra

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São Carlos (SP)

Tal como certos cavaleiros da Antiguidade e da Idade Média, um misterioso organismo que viveu há mais de 540 milhões de anos estava coberto com uma armadura de placas rígidas, encaixadas umas nas outras, que lhe permitiam certa flexibilidade apesar da proteção. Segundo os pesquisadores brasileiros que analisaram esses fósseis, trata-se do esqueleto articulado mais antigo identificado até agora, com detalhes que podem ajudar a entender a evolução de boa parte dos animais que conhecemos hoje.

A criatura em questão é a Corumbella, assim batizada porque muitos de seus fósseis foram encontrados em Corumbá, Mato Grosso do Sul, embora também haja registros do invertebrado em rochas do Paraguai e dos EUA.

Com base em restos excepcionalmente bem preservados do animal e técnicas avançadas de microscopia e tomografia, os cientistas acabam de publicar a descrição mais precisa da estrutura anatômica do bicho até agora, em artigo na revista especializada iScience.

Ilustração da Corumbella, organismo que viveu há mais de 540 milhões de anos e que era coberto por uma armadura de placas rígidas
Ilustração da Corumbella, organismo que viveu há mais de 540 milhões de anos e que era coberto por uma armadura de placas rígidas - Júlia Soares d'Oliveira/Divulgação

Além de pesquisadores do Brasil, o grupo inclui colaboradores da Escócia e da Alemanha.

Entender como a Corumbella vivia e onde ela se encaixa na árvore genealógica dos animais é particularmente importante porque ela habitou os oceanos num dos momentos mais enigmáticos da história da vida na Terra. Trata-se do Ediacarano, um período geológico no qual organismos de muitas células e visíveis a olho nu se tornaram comuns pela primeira vez.

O problema, porém, é que os fósseis do Ediacarano têm características difíceis de conectar com os grupos de animais que surgem mais tarde, os quais têm relação bem mais clara com as espécies que conhecemos hoje. Muitos têm estrutura de "frondes" (lembrando grandes folhas), outros apresentam formato de disco, e há também a presença do que parecem ser rastros de vermes no solo marinho.

"Nessa biota, muitos organismos estão no ‘meio do caminho’ entre animais e alguma outra coisa que não compreendemos", explica a coordenadora do estudo, Mírian Forancelli Pacheco, da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). De qualquer modo, há quem associe alguns desses fósseis aos cnidários (grupo das atuais águas-vivas).

Aliás, uma ligação com os cnidários era a hipótese predominante até agora para quem tentava classificar a Corumbella. Entretanto, "os novos dados aos quais estamos tendo acesso podem revelar evidências a favor de uma nova hipótese filogenética", diz Pacheco. "Segundo essa hipótese, esse bicho está no meio do caminho entre animais com simetria radial e bilateral."

Trocando em miúdos, isso pode significar que a Corumbella representaria uma das maiores e mais antigas encruzilhadas da evolução dos animais. Quase todos os bichos que vemos ao nosso redor hoje —vertebrados, insetos, aracnídeos etc.— pertencem ao grande grupo designado como Bilateria. Ou seja, o corpo deles pode ser dividido em um lado direito e um lado esquerdo que são simétricos entre si. A mão direita de um ser humano, por exemplo, é uma imagem espelhada de sua mão esquerda.

Já os animais com simetria radial "espelham" as partes do corpo em torno de um eixo central. O exemplo mais fácil de entender visualmente é o das estrelas-do-mar, com seus braços que se repetem virados para vários lados. Trata-se, porém, de um exemplo um tanto enganador, já que as estrelas-do-mar, na verdade, fazem parte dos Bilateria —suas larvas têm simetria bilateral, como nós. A simetria radial "raiz", de animais pertencentes a grupos mais antigos que os Bilateria, está presente nos cnidários e nas esponjas, por exemplo.

No caso da Corumbella, a coisa é mais complicada. A reconstrução feita pela equipe brasileira indica que, na parte em que ela ficava presa ao solo marinho, a criatura tinha um formato tubular; no entanto, em seu topo, ela adquiria uma simetria de quatro lados atravessados por uma linha (veja reconstrução artística).

Além disso, ela possuía o que os pesquisadores designaram como esqueleto catafractário. "Fomos inspirados pela forma de organização dos elementos das armaduras militares", conta Gabriel Ladeira Osés, primeiro autor da pesquisa.

Os chamados catafractários eram guerreiros a cavalo pesadamente armados, presentes em exércitos como os do Império Persa e do Império Romano do Oriente a partir do fim da Antiguidade. As armaduras, que cobriam tanto o cavaleiro quanto sua montaria, eram formadas por escamas sobrepostas de metal, presas com fios (também de metal) a uma camada de couro embaixo.

Em vez de metal, a armadura da Corumbella provavelmente era formada por placas e anéis do mineral aragonita, um tipo de carbonato de cálcio. "Ela poderia ter propiciado proteção contra predadores e aumento da sustentação", diz Osés. Segundo os pesquisadores, aliás, o possível aparecimento dos predadores deve ter sido o principal gatilho para a evolução dos esqueletos dos animais naquele período remoto.

"Cada uma das partes do esqueleto era bastante rígida. Mas a organização e a disposição dessas partes permitiam um tipo de articulação que garantia a flexibilidade do todo. É como um cavaleiro medieval que, usando sua armadura, estava protegido em uma estrutura rígida, mas não perdia a articulação dos movimentos", compara Pacheco.

Uma possibilidade é que o animal se alimentasse filtrando a água do mar que passava por ele. "Também poderia ser um suspensívoro, capturando partículas alimentares com a ajuda de cílios ou tentáculos, por exemplo", explica Osés.

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