Descrição de chapéu África genética

Costa Suaíli já se conectava com redes globais de comércio bem antes de Vasco da Gama

Análise de DNA de antigos habitantes da região sugere ascendência persa, indiana e árabe

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São Carlos (SP)

Séculos antes que Vasco da Gama e outros navegadores portugueses desembarcassem na África Oriental, o litoral da região já estava conectado a redes globais de comércio. Marcas disso estão no DNA de antigos habitantes da região, mostra um novo estudo: quase todos eles parecem descender da união de africanos e viajantes de origem persa, indiana e árabe.

Segundo os cálculos da equipe responsável pela pesquisa, esse processo teria ganhado força por volta do ano 1000 d.C., período que coincide com o avanço do Islã na região. Embora os dados genômicos tenham sido obtidos em sítios arqueológicos da Tanzânia e do Quênia, é provável que a antiga miscigenação entre africanos e mercadores do Oriente Médio e da Índia abranja também áreas como Moçambique (uma das fontes de pessoas escravizadas para o tráfico negreiro do Brasil).

Os novos dados acabam de sair em artigo na revista científica Nature. O trabalho foi coordenado por David Reich, da Universidade Harvard (EUA), e Chapurukha Kusimba, dos Museus Nacionais do Quênia.

Embarcações participam de competição na região de Lamu, no Quênia, durante festival da cultura Sualí
Embarcações participam de competição na região de Lamu, no Quênia, durante festival de cultura suaíli - Radu Sigheti - 18.nov.06/Reuters

A dupla e seus colaboradores obtiveram material genético de 80 indivíduos que morreram em seis cidades costeiras da região e uma localidade no interior, com datações que começam na Idade Média (por volta do ano de 1250), passam pela chamada Era dos Descobrimentos e vão até 1800, algumas décadas antes que a região se tornasse colônia do Império Britânico.

A partir do século 19, a área englobada pelo estudo ficou conhecida como costa Suaíli, por causa do predomínio do idioma de mesmo nome ali. O suaíli é indiscutivelmente uma língua africana, parte do grande grupo dos idiomas bantos (presentes também no Congo, em Angola, na África do Sul e outros lugares). Ao mesmo tempo, incorpora uma grande quantidade de palavras de origem árabe —a começar pelo próprio nome da língua, que significa algo como "da costa" no idioma do Corão— e persa, entre outras influências.

Tudo indica que as conexões entre a costa Suaíli e as grandes rotas de comércio do oceano Índico são bastante antigas, remontando pelo menos ao século 7º d.C. Foi quando as comunidades costeiras da região, antes mais simples, dedicadas à pesca e ao trabalho agrícola, começaram a se transformar em cidades e passaram a receber produtos por via marítima com mais intensidade.

Ruínas de mesquita na ilha de Kilwa Kisiwani, na região sul da Tanzânia
Ruínas de mesquita na ilha de Kilwa Kisiwani, na região sul da Tanzânia - 30.out.06/Reuters

Os comerciantes vindos da Ásia tinham interesse em produtos de luxo tipicamente africanos, como o marfim de elefantes, mas também no ouro, vindo de regiões mais distantes do exterior. O tráfico de pessoas escravizadas também se dava por essa rota. A navegação era facilitada pelos ventos que sopravam para o sudoeste de março a outubro, levando navios do Oriente Médio e da Índia para a África Oriental, e depois para nordeste de novembro a março, permitindo até um retorno dos mercadores no mesmo ano da ida, com alguma sorte.

Ao estudar o material genético de pessoas da Idade Média e da Era dos Descobrimentos, os pesquisadores usaram duas abordagens principais. De um lado, fizeram uma estimativa geral da contribuição de diferentes populações para o DNA delas —grosso modo, a "mistura" de pais e mães ao longo do tempo.

Além disso, eles analisaram dois tipos de material genético que não entram nessa mistura, mas normalmente são transmitidos de forma direta na linhagem de cada pessoa. Nesse caso, estamos falando do cromossomo Y, a marca genômica do sexo masculino, em geral transmitido apenas de pai para filho homem; e o mtDNA ou DNA mitocondrial, que só existe no interior das mitocôndrias, as usinas de energia das células. O mtDNA só é transmitido pelo lado materno, de mãe para filha ou filho.

Com base nisso, os pesquisadores verificaram que, em média, os antigos habitantes da costa Suaíli tinham pouco mais da metade de seu DNA "global" com origem africana, enquanto o restante era ligado principalmente a populações de etnia persa (no atual Irã), incluindo ainda uma pequena contribuição indiana e, em casos mais raros, árabe. Esse padrão só não aparece nas populações do interior.

Por outro lado, o cromossomo Y e o mtDNA mostram como exatamente essa miscigenação se deu. Mais de 80% dos homens da antiga costa Suaíli carregavam um cromossomo Y típico do Oriente Médio, enquanto mais de 95% das pessoas da região naquela época tinham mtDNA tipicamente africano. Ou seja, tudo indica que a união entre homens (quase sempre) persas e mulheres africanas acabou dando origem à cultura suaíli com o passar do tempo.

Registros históricos de Kilwa, uma das principais cidades da região na Idade Média, de fato falam da chegada de navegadores da província persa de Shiraz. Moedas encontradas em Kilwa indicam que um nobre de origem persa chamado Ali bin al-Hasan teria se tornado governante da cidade por volta do ano 1050. Os imigrantes teriam impulsionado transformações urbanas na região, como a construção de mesquitas e túmulos islâmicos usando coral como matéria-prima.

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