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Cientistas divergem sobre o local de origem dos mamíferos modernos

Alguns pesquisadores defendem que eles surgiram no hemisfério norte; outros, que foi no sul

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Anthony Ham
The New York Times

Em 1996, paleontólogos fizeram uma descoberta espantosa no noroeste de Madagascar. Entre ossos de dinossauros e sedimentos arenosos, foi encontrado um pequeno fragmento de maxilar com três dentes e 167 milhões de anos de idade. Pertencia a um Ambondro mahabo, uma espécie 25 milhões de anos mais velha que qualquer mamífero de seu tipo já encontrado.

E não deveria estar ali. Na época, o que se sabia sobre o registro fóssil apontava com alto grau de certeza para a conclusão de que os ancestrais dos mamíferos modernos surgiram no hemisfério norte.

"A ideia predominante era que não deveríamos encontrar algo assim do intervalo de tempo do qual estávamos tirando amostras, não no hemisfério sul", disse John Flynn, o paleontólogo que comandou aquela escavação e agora é o curador Frick de mamíferos fossilizados no Museu Americano de História Natural, em Nova York.

Uma reconstituição da vida de 'Ambondro mahabo', um mamífero tribosfênico de 10 cm de comprimento
Uma reconstituição da vida de 'Ambondro mahabo', um mamífero tribosfênico de 10 cm de comprimento - Flynn & Wyss, Scientific American, 2004 via NYT

É preciso mais que um único fóssil para derrubar toda uma teoria da evolução. Mas uma revisão dos fósseis em mãos de cientistas e museus publicada no ano passado no periódico Alcheringa procurou virar do avesso décadas de ideias vigentes sobre paleontologia. Após um estudo exaustivo de crânios, maxilares e dentes, uma equipe de paleontólogos australianos concluiu que os mamíferos modernos se originaram no hemisfério sul.

Suas descobertas desencadearam um debate acirrado e trouxeram à luz uma divergência Norte-Sul. Os defensores da hipótese do hemisfério norte destacam pontos fracos que enxergam nas descobertas mais recentes. Em resposta, os postulantes da origem no hemisfério sul, como Flynn, dizem que é hora de os paleontólogos encararem o argumento de que a visão que têm da história natural pode estar enviesada em favor da metade do mundo onde cientistas realizaram mais escavações.

"No hemisfério sul, estes são lugares que ainda não foram explorados por paleontólogos", disse Flynn. "Tem havido no sistema um viés generalizado de longo prazo a favor de uma perspectiva do hemisfério norte, em parte porque é dali que vieram os cientistas. E isso te leva a interpretar muitas coisas à luz desse viés."

No coração da disputa estão os antecessores primitivos dos mamíferos modernos placentários e marsupiais. Conhecidos como mamíferos tribosfênicos, eram "bichinhos semelhantes a musaranhos e que deviam ter o peso de um camundongo", disse Tim Flannery, paleontólogo australiano independente e um dos autores do artigo recente de revisão.

Embora fossem sofisticados para seu tempo, eram uma versão muito básica dos mamíferos, tais como os conhecemos hoje. Flannery os comparou ao Ford Modelo T "dos mamíferos modernos ou placentários".

A mandíbula do 'Ambondro mahabo', uma espécie que tinha 25 milhões de anos a mais do que qualquer mamífero de seu tipo já encontrado
A mandíbula do 'Ambondro mahabo', uma espécie que tinha 25 milhões de anos a mais do que qualquer mamífero de seu tipo já encontrado - J. Flynn et al. via NYT

Flannery e companhia apontam para argumentos geográficos a favor da ideia de que os primeiros mamíferos podem ter surgido no hemisfério sul. Quanto maior a massa terrestre, maior é a probabilidade de ocorrência de atividade evolutiva importante. Na época em que os mamíferos estavam emergindo, Gondwana abrangia a África, Índia, Austrália e América do Sul e era muito maior que a Laurásia, no hemisfério norte.

"Muita coisa estava acontecendo por aqui", disse Flannery, destacando o surgimento de pássaros canoros e de raptores em Gondwana na Era dos Dinossauros. "Nós apenas acrescentamos esse detalhe a mais: pensamos que os mamíferos também estavam evoluindo aqui."

Os primeiros mamíferos do hemisfério sul eram diferentes de qualquer coisa que nosso planeta havia visto até então.

"Possuíam dentes de complexidade ímpar que permitiam ao animal furar seu alimento, esmagá-lo, fatiá-lo, tudo com diferentes facetas do mesmo dente", disse Flannery. Isso lhes dava uma grande vantagem em relação a outros organismos. "Quando eles chegaram ao hemisfério norte, se espalharam e diversificaram muito rapidamente."

O mais antigo fóssil tribosfênico, da América do Sul, data de 180 milhões de anos atrás, e há uma linha clara de outros fósseis tribosfênicos encontrados no hemisfério sul, incluindo Ambondro mahabo, até 100 milhões de anos atrás.

"Nesse momento os dentes já haviam se convertido na espécie de canivete suíço ou kit de ferramentas para tudo que os dentes dos mamíferos se tornariam", disse Kris Helgen, cientista chefe do Museu Australiano em Sydney e outro autor do artigo de revisão recente.

Pesquisadores coletam sedimentos para peneirar e procurar fósseis de 'Ambondro mahabo' em Madagascar, em 1996
Pesquisadores coletam sedimentos para peneirar e procurar fósseis de 'Ambondro mahabo' em Madagascar, em 1996 - J. Flynn et al. via NYT

Foi também nessa época —entre 100 milhões e 125 milhões de anos atrás— que os primeiros mamíferos tribosfênicos apareceram no hemisfério norte.

Flannery e seus coautores argumentam que, tendo evoluído no Sul, os mamíferos tribosfênicos teriam migrado para o norte, deslocando-se de ilha em ilha até cobrir o trajeto entre os dois supercontinentes.

Para Flannery, essa explicação se enquadra com a teoria de que um novo tipo de mamífero vinha evoluindo no hemisfério sul por milhões de anos antes de aparecer repentinamente no hemisfério norte.

"Não há nada no hemisfério norte que seja claramente ancestral desses animais, mas no hemisfério sul há muitos", ele disse.

Nem todos concordam. Zhe-Xi Luo, da Universidade de Chicago, é um dos defensores da hipótese existente de que os mamíferos tribosfênicos teriam surgido no hemisfério norte. Ele disse que a hipótese das origens no hemisfério sul "foi prejudicada pela ausência de um volume enorme de dados".

Flannery e seus coautores, ele argumenta, dão importância demais aos fósseis de molares ou dentes, às expensas de outras partes da anatomia dos mamíferos. E eles não levaram em conta fósseis de todos os ramos da árvore evolutiva dos mamíferos. Além disso, disse Luo, Flannery e seus coautores não fizeram uma análise computacional dos dados existentes. Um estudo estatístico desse tipo requer a construção de um vasto banco de dados de fósseis conhecidos e o uso de algoritmos para comparar características anatômicas. Ele também permite aos paleontólogos reconstruir padrões de ancestralidade e, por sua vez, evolução.

Flannery, que questiona a confiabilidade de bancos de dados do tipo, disse que a decisão de não fazer uma análise desse tipo foi transparente e intencional. Segundo ele, essas análises levam alguns elementos a ser contados duas vezes, e o próprio banco de dados pode não ser confiável.

Luo, em seu próprio trabalho, sugere que os mamíferos tribosfênicos provavelmente emergiram na China, independentemente de qualquer coisa que estivesse ocorrendo no hemisfério sul.

Segundo ele, os mamíferos tribosfênicos do hemisfério sul ou desapareceram ou se tornaram monotremados, uma família de mamíferos que inclui os ornitorrincos e as équidnas.

Flannery e seus coautores trataram das ligações entre mamíferos monotremados e tribosfênicos em um artigo científico diferente no ano passado. Nele, argumentaram que os monotremados pertencem a um ramo separado da árvore evolutiva dos mamíferos.

"Os monotremados não têm relação alguma com outros mamíferos modernos", ele disse. "São uma linhagen ainda mais antiga." Luo discorda fortemente dessa conclusão.

Guillermo Rougier, paleontólogo da Universidade de Louisville e revisor do estudo de Flannery e seus coautores, endossou cautelosamente o argumento da origem no hemisfério sul.

"É como uma gangorra com uma pedra de uma tonelada em cada ponta, e então você acrescenta dois grãos de arroz a um dos lados", ele disse. "Você acaba com uma conclusão baseada em uma tonelada mais dois grãos de evidências, mas do outro lado você tem outra conclusão que é baseada em uma tonelada de evidências."

Nenhum dos lados prevê que esse artigo seja a palavra final na tentativa de reconstrução do passado dos mamíferos.

"No momento, é como encontrar um fóssil com pescoço comprido e fazer deduções que confundem uma girafa com o monstro do Lago Ness, porque não temos informação suficiente", disse Rougier.

Flynn disse: "As pessoas pensam que tudo na paleontologia já foi descoberto. Nada poderia estar mais longe da verdade".

Tradução de Clara Allain

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