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Tese de vazamento do vírus da Covid de laboratório chinês esfria pesquisas nos EUA

Onda de preocupação prejudica estudos que poderiam prevenir o surgimento da próxima pandemia

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Benjamin Mueller Sheryl Gay Stolberg
State College e Washington | The New York Times

As dúvidas sobre a possibilidade de vazamento do vírus da Covid-19 de um laboratório chinês esfriaram a pesquisa americana relativa aos vírus, reduzindo o financiamento para pesquisadores envolvidos na coleta e na modificação de agentes patogênicos perigosos e intensificando o debate em relação a essas práticas.

Esse retrocesso causou uma transformação notável em um dos campos mais controversos da ciência médica. Embora alguns acreditem que essas pesquisas possam evitar a próxima pandemia, outros temem que elas a desencadeiem.

Segundo Troy Sutton, virologista da Universidade Estadual da Pensilvânia, as autoridades de saúde usaram a polêmica pública da teoria do vazamento do laboratório para aconselhá-lo a investir em outros experimentos
Segundo Troy Sutton, virologista da Universidade Estadual da Pensilvânia, as autoridades de saúde usaram a polêmica pública da teoria do vazamento do laboratório para aconselhá-lo a investir em outros experimentos - Haiyun Jiang/The New York Times

Na Universidade Estadual da Pensilvânia, uma proposta para infectar furões com um vírus mutante da gripe aviária obteve aprovação na mais rigorosa revisão de biossegurança feita pelo governo federal, mas acabou sendo rejeitada pelo Instituto Nacional de Saúde (NIH, em inglês).

Troy Sutton, o cientista à frente dessas pesquisas, disse que as autoridades de saúde o aconselharam a conduzir estudos alternativos, em razão da controvérsia pública associada à teoria do vazamento em laboratório.

Em Washington, autoridades de desenvolvimento internacional suspenderam neste verão setentrional um programa de US$ 125 milhões destinado a coletar vírus de animais em vários continentes, depois que dois senadores republicanos exigiram o encerramento do projeto.

E em outras partes dos Estados Unidos quase duas dúzias de especialistas em vírus relataram uma desaceleração nas pesquisas sensíveis que abrangem diversas áreas da profissão.

Alguns falaram sob condição de anonimato, temendo pôr em risco seu financiamento ou sua carreira. Alguns disseram que desistiram de propor esse tipo de pesquisa porque seus planos estão sendo progressivamente desgastados pelas revisões longas e opacas promovidas pelo governo.

Um especialista em vírus afirmou que os administradores da universidade lhe pediram que retirasse seu nome de um estudo efetuado em parceria com colegas na China.

Entre os experimentos afetados, estão inclusas pesquisas sobre ganho de função, que envolvem modificações genéticas em um vírus para avaliar se estas tornam o patógeno mais mortal ou contagioso.

Para os defensores desse tipo de pesquisa, não há maneira mais eficaz de identificar quais mutações podem tornar um vírus perigoso. Essas descobertas, por sua vez, podem ajudar os cientistas a identificar os patógenos mais preocupantes que constantemente fazem a transição de animais para seres humanos, bem como para preparar vacinas direcionadas a vírus que apresentem riscos de desencadear uma pandemia.

O laboratório Eva J. Pell da Universidade Estadual da Pensilvânia é o segundo mais seguro dos EUA
O laboratório Eva J. Pell da Universidade Estadual da Pensilvânia é o segundo mais seguro dos EUA - Haiyun Jiang/The New York Times

"A próxima pandemia de gripe está se formando na natureza, mas temos pouquíssimos meios de detê-la ou de identificar quais são os vírus mais perigosos. Esse trem de carga está chegando, e precisamos fazer tudo que pudermos para nos antecipar a ele", disse Sutton.

Com o acirramento desses debates e a descoberta de frascos de varíola esquecidos nas instalações do NIH em 2014, o financiamento para pesquisas envolvendo ganho de função foi temporariamente suspenso pelo governo Obama naquele ano.

Sutton finalizara recentemente sua pesquisa sobre a gripe aviária na Universidade de Maryland, projeto que passou por diversas revisões governamentais e gerou críticas de alguns colegas cientistas. Ele comentou com sua esposa que talvez fosse o momento de deixar a pesquisa acadêmica.

Mas o governo Trump suspendeu a pausa e implantou novas regras de supervisão em 2017, o mesmo ano em que Sutton abriu seu laboratório na Penn State.

De acordo com as novas regras, um comitê governamental especializado passaria a analisar propostas específicas relacionadas ao ganho de função, outra etapa de um processo de verificação que inclui inspeções de laboratórios e análises de biossegurança nas universidades.

O comitê mantém o anonimato de seus membros e não divulga detalhes sobre as deliberações. Sua supervisão é limitada a pesquisas financiadas pelo governo, e apenas três projetos foram avaliados até o momento. Isso se deve, em parte, ao fato de que alguns cientistas optaram por não prosseguir com propostas que poderiam desencadear revisões prolongadas.

Mas Sutton não desanimou. Formou-se em virologia no mesmo hospital em Vancouver onde sua mãe havia sucumbido ao câncer quando ele tinha 12 anos. Para ele, a ciência havia ficado aquém do esperado e, para proteger a saúde das pessoas, os pesquisadores precisavam investigar novas fronteiras das doenças. Seu projeto foi o terceiro estudo relacionado ao ganho de função a ser analisado pelo comitê.

'Eles não se sentiam à vontade'

O laboratório de alta segurança da Penn State, localizado em uma zona remota do campus, protegido por uma cerca alta, funciona como um vácuo: o ar externo entra antes de ser expelido por filtros de alta eficiência, removendo partículas potencialmente contaminadas.

Antes de manipular os vírus, os cientistas vestem um traje com capuz de filtragem alimentado por bateria. Trocam sua roupa normal por equipamento de proteção antes de iniciar seu trabalho e tomam banho para se descontaminar antes de sair.

Foi nesse ambiente altamente controlado que, em 2018, Sutton propôs que fossem feitos estudos sobre a gripe aviária.

Os experimentos passaram pelo primeiro crivo no NIH: um grupo influente de cientistas especializados recomendou o financiamento. Em seguida, veio a análise do comitê de ganho de função.

Sutton contou que o comitê esmiuçou seu estudo, fazendo questionamentos detalhados sobre treinamentos, equipamentos e triagem de trabalhadores, e que, em fevereiro de 2020, comunicou que o projeto estava autorizado a prosseguir, com a condição de fornecer alguns esclarecimentos. Só era necessária a aprovação dos líderes do NIH.

Mas o projeto logo se viu diante de desafios no Capitólio. Em novembro de 2021, dois republicanos influentes nos comitês que supervisionam a agência e seu financiamento –o senador Jim Risch, de Idaho, e o senador Lindsey Graham, da Carolina do Su – enviaram uma carta exigindo detalhes sobre a empreitada, citando preocupações com o financiamento federal anteriormente destinado a pesquisas na China.

Neste verão setentrional, antes do início do trabalho de campo, a Usaid comunicou diretamente aos cientistas que o financiamento estava sendo cancelado. A primeira reportagem sobre a decisão e as objeções ao programa foi feita pelo periódico médico BMJ.

Abandono de estudos

A opinião de virologistas e especialistas em biossegurança coincide em um ponto crucial: o processo de aprovação do governo federal é notoriamente opaco e excessivamente lento.

Um cientista, que há muito tempo recebe financiamento do NIH, relatou que uma de suas propostas, que visava aprofundar o entendimento das variantes altamente contagiosas do coronavírus, ficou emperrada nas esferas da saúde pública por mais de um ano.

Erbelding afirmou que o processo de revisão de estudos de ganho de função permanece inalterado desde sua introdução em 2017 e que o aumento na quantidade de propostas de pesquisa em virologia, decorrente da pandemia, pode ter contribuído para a percepção de que as revisões estão mais demoradas.

A Casa Branca está revisando as políticas de supervisão das pesquisas sobre o ganho de função depois que um painel de especialistas aprovou reformas abrangentes este ano. Contudo, sem uma orientação mais clara, alguns especialistas em virologia optaram por abandonar projetos, por medo de se tornar alvos de investigações do Congresso ou de uma revisão de biossegurança que duraria anos.

"Os cientistas estão se afastando de certas áreas de pesquisa, prevendo os atrasos e a crescente burocracia. Muitos partidos estão se tornando mais conservadores", disse Anice Lowen, virologista especializada em influenza da Universidade Emory.

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