Descrição de chapéu Coronavírus China

O que hoje a ciência sabe sobre a origem da Covid-19

Disputa entre EUA e China bloqueia investigação de hipótese de gênese da pandemia por vazamento em laboratório em Wuhan

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Voluntários desinfetam teatro em Wuhan, epicentro da Covid-19 na China Aly Song - 2.abr.2020/Reuters

Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

[RESUMO] Mais de três anos depois do início da pandemia de Covid-19, o debate científico sobre as origens do Sars-CoV-2 se encontra em um terreno estéril, em que motivações geopolíticas têm mais relevância que evidências. Livro de 2021 desafia a interpretação majoritária na academia, que indica um salto do vírus de animais para humanos, e favorece a hipótese de escape laboratorial, considerada frágil por críticos por se basear em um encadeamento improvável de poucos fatos e muitas suposições.

O mistério sobre a origem da Covid-19, pandemia que matou ao menos 7 milhões de pessoas, torpedeia de modo exemplar uma bobagem muito difundida a respeito da ciência. Não, ela não produz verdades absolutas, nem mesmo fatos indubitáveis lastreados em evidências consensuadas após escrutínio transparente por pesquisadores desinteressados.

Neste caso, a opinião pública ainda está envolta em neblina em um pântano de indícios contraditórios, opacidade na produção, manipulação e divulgação de dados e conflitos de interesse. A ameaça sanitária global mais séria desde a gripe de 1918 caiu prisioneira de um debate estéril em que motivações políticas pesam mais que evidências.

Profissional de saúde coleta amostra para exame de Covid-19 em Pequim, na China - Noel Celis - 3.mar.23/AFP

Há duas hipóteses na praça sobre o advento do Sars-CoV-2. A primeira, que já foi tida como a mais provável, aponta uma origem zoonótica: o novo coronavírus, oriundo de morcegos, teria encontrado um intermediário animal, como cães-guaxinins, para chegar à espécie humana e deflagrar a mortandade planetária.

No centro da explicação se encontra o mercado Huanan, em Wuhan, cidade de 11 milhões de habitantes no centro-leste da China onde se detectaram as primeiras infecções, em dezembro de 2019. Ali se vendia carne de animais silvestres, alguns abatidos no próprio local, daí a suspeita de que o paciente zero tenha surgido no local.

Seria uma reprise do surto de Sars (síndrome respiratória aguda grave) que alarmou o mundo em 2002 e foi rapidamente contido. A diferença é que a zoonose precursora matou menos de mil pessoas. Descobriu-se depois que esse outro coronavírus de morcegos pegou carona em civetas (ou gatos-almiscarados) para infectar seres humanos.

No caso do primo Sars-CoV-2, até hoje se desconhece qual foi o animal intermediário. Essa lacuna, em associação com vários outros indícios, fez prosperar uma segunda hipótese: a fonte da pandemia estaria no Instituto de Virologia de Wuhan (IVW), maior centro de pesquisa com coronavírus da China.

A explicação alternativa —e explosiva, em termos geopolíticos e de biossegurança— foi precocemente descartada pela comunidade científica e pela imprensa, fora raras exceções. Entre os que desafinavam o coro dos contentes com a origem zoonótica, despontaram Alina Chan e Matt Ridley.

A dupla fez barulho na rede antes conhecida como Twitter. Em 2021, eles lançaram o livro "Viral: the Search for the Origin of Covid-19" (viral: a busca pela origem da Covid-19) advogando que não se descartasse a hipótese de acidente laboratorial, claramente favorecida por eles.

Não lhes faltam credenciais. Chan, uma canadense que cresceu em Singapura, faz pós-doutorado no Instituto Broad do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), como especialista em terapia genética, e lançou recentemente uma base de dados sobre genética do Sars-CoV-2, Covid CG.

Ela disse a Antonio Regalado, da revista MIT Review, que seus pais lhe recomendaram manter-se longe da política (não foi possível encontrar tradução da reportagem na edição brasileira). Em um Estado de índole autoritária como o singapuriano, faz sentido, mas nos EUA a geneticista acabou mergulhada de cabeça na política, chamada até para dar palestra no Departamento de Estado em 7 de janeiro de 2021, um dia após a invasão do Capitólio ao final do governo Trump.

Ridley tem perfil diverso. Visconde britânico, o empresário está na Câmara dos Lordes desde 2013 e presidiu o banco Northern Rock até a beira da insolvência em 2007, quando a instituição recebeu bilhões do governo e acabou estatizada.

Formado em biologia, ele é também jornalista de ciência e autor de livros que venderam mais de 1 milhões de exemplares, como "Genoma: A Autobiografia da Espécie em 23 Capítulos" (Harper Collins, 2000). Já escreveu para publicações como The Times, The Wall Street Journal e The Economist. Em seu blog, há artigos denunciando alarmismo com mudanças climáticas e riscos da transição rápida para carros elétricos.

Ao longo das 430 páginas de "Viral", Chan e Ridley desfiam com minúcia, por vezes impenetrável e entediante, a rápida polarização entre adeptos de uma e outra hipótese sobre a origem do Sars-CoV-2. Um dos alvos preferidos do livro é Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, uma ONG de pesquisa envolta em cooperação com o IVW sobre riscos de pandemias com coronavírus.

Em fevereiro de 2020, apenas dois meses depois do primeiro diagnóstico de Covid em Wuhan, Daszak rascunhou uma carta condenando teorias conspiratórias contrárias à hipótese de origem natural do vírus. Partiu em busca de apoio ao documento, publicado em 7 de março no periódico Lancet com 27 assinaturas de especialistas.

Dez dias depois, o virologista Kristian Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps, e colegas da Austrália, do Reino Unido e dos EUA publicaram na Nature Medicine outra correspondência pró-zoonose, sob o título "A Origem Proximal do Sars-CoV-2". Escreveram: "Não acreditamos que seja plausível cenário algum do tipo baseado em laboratório".

As duas cartas fixaram o tom da discussão por muito tempo. A partir delas, quem aventasse a hipótese de vazamento laboratorial passaria a ser rotulado de teórico da conspiração ou, pior, simpatizante de Trump (pior ainda, no Brasil, de Jair Bolsonaro).

Daszak terminaria muito criticado, mais à frente, por ter omitido, na declaração de possíveis conflitos de interesse publicada na Lancet, seu óbvio comprometimento com o IVW e sua principal pesquisadora, Shi Zhengli. Shi chegou a ser alcunhada Batwoman por sua dedicação, desde 2011, à coleta de material de morcegos nas cavernas de Yunnan, província no sul da China a mais de 1.200 km de Wuhan.

Em colaboração com Daszak, ela estava no encalço de variedades de coronavírus. Em um período de 16 meses, entre abril de 2011 e setembro de 2012, amealhou 117 amostras anais de quirópteros, das quais 27 se revelaram positivas para coronavírus de sete linhagens similares ao Sars de 2002, relatam Chan e Ridley. Ao longo da parceria, a dupla acumulou milhares de espécimes e sequências genéticas desse tipo de vírus.

Nada disso era de conhecimento amplo quando Daszak orquestrou o movimento em favor da origem natural da pandemia de 2019. Tampouco se sabia que pelo menos US$ 1 milhão, de US$ 3,1 milhões de fundos dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH) obtidos pela EcoHealth Alliance, havia sido repassado ao IVW e outro centro chinês de pesquisa de coronavírus.

A justificativa, plausível e louvável, era investigar mecanismos que poderiam tornar os coronavírus mais infecciosos para humanos e, com esse aprendizado, preparar melhor os sistemas de saúde contra novas pandemias, por exemplo com vacinas. Pesquisadores em Wuhan manipulavam os vírus, fundiam-nos uns com os outros e, mais tarde se soube, tentavam modificar a proteína S, da espícula que o vírus usa para entrar nas células humanas, de modo a torná-la mais eficiente.

Crianças brincam em barco às margens do rio Yangtze em Wuhan - Tingshu Wang - 31.dez.22/Reuters

Enquanto virologistas proeminentes se articulavam para desqualificar a origem laboratorial, essas informações iam sendo recolhidas pouco a pouco por um exército de pesquisadores céticos e jornalistas investigativos, com divulgação estridente nos tuítes de Chan. Elas tornavam no mínimo plausível a hipótese alternativa de escape laboratorial, mas eram descartadas como picuinhas de teóricos da conspiração.

A controvérsia pegou fogo com base em uma tecnicalidade, o sítio de clivagem com furina (em inglês, "furin cleavage site"). Essa modificação na proteína S no Sars-CoV-2 aumentou sua capacidade de invadir células humanas, mas até então era desconhecida em coronavírus colhidos na natureza. Vários especialistas tomaram-na como assinatura de intervenção artificial no vírus, uma construção que poderia bem ter acontecido no instituto em Wuhan.

Em uma publicação de Shi sobre o genoma do Sars-CoV-2, a pesquisadora omitiu esse detalhe, o que Chan ironizou dizendo que era como descrever um unicórnio e não mencionar o chifre na testa. Nem ela nem Daszak foram transparentes quanto ao fato de que o sítio de clivagem com furina figurava nos seus planos de pesquisa.

A alegação dos céticos com a hipótese laboratorial de que a alteração decisiva na espícula poderia ter surgido espontaneamente, por evolução natural em coronavírus de morcegos, só ganharia apoio em evidência em agosto de 2021. Edward Holmes publicou então, no periódico Cell, a descrição de um coronavírus de morcego, HCoV-HKU1, contendo essa modificação e a capacidade de provocar pneumonia em seres humanos.

Antes de essa informação vir à tona, entretanto, o busílis da furina fortaleceu a divisória entre adeptos e adversários do acidente de laboratório. Para os primeiros, era indício, se não prova ou evidência, de que o Sars-CoV era um ser engenheirado; para alguns deles, possivelmente um protótipo de arma biológica desenvolvido em segredo no IVW e vazado por azar.

Ao recusar essa especulação como paranoica e até racista (antichinesa), os advogados da zoonose impugnavam de cambulhada também a hipótese menos fantasiosa de que se tratasse de um estudo legítimo para entender a arquitetura de coronavírus, seguido de um lamentável acidente.

Não menos fantasiosas foram as hipóteses de que o Sars-CoV-2 surgira no mercado Huanan a bordo de pangolins (parente escamoso de tamanduás) ou em carne de animal silvestre congelada. Mas elas foram usadas durante semanas para rebater a origem em laboratório, antes de serem descartadas.

A explicação frigorífica teve abrigo —tudo indica que por pressão do governo chinês— em relatório de uma missão da OMS (Organização Mundial da Saúde) que visitou Wuhan em janeiro de 2021. Mais de um ano após se iniciar a pandemia, o grupo de investigadores se dividia à metade entre representantes chineses e especialistas estrangeiros —entre eles o onipresente Daszak.

Os visitantes, decerto, só viram o que os anfitriões quiseram mostrar. Além disso, o mercado havia passado, ainda no começo do surto em Wuhan, por uma desinfecção desastrosa, do ponto de vista forense, pois poderá ter destruído evidências cruciais para confirmar ou excluir Huanan como origem da Covid.

Mesmo assim, 457 amostras de animais de 18 espécies à venda ali terminaram colhidas, mas nenhuma delas registrou material genético do Sars-CoV-2. A análise de 616 animais de dez espécies de fornecedores de Huanan tampouco encontrou evidência do vírus, tornando mais improvável ainda a hipótese de transmissão zoonótica naquele local.

Outras 923 amostras ambientais foram coletadas em maçanetas, balcões, sanitários e esgotos do mercado. Em apenas 21 das mais de 600 lojas se encontraram vestígios do Sars-CoV-2, 16 delas boxes de carne congelada. Apenas uma vendia animais silvestres, mas ao lado de frutos do mar, aves e carne de gado. O governo chinês só divulgou tais dados três anos depois de deflagrada a pandemia, assinalam Chan e Ridley.

Além disso, o material genético obtido no mercado evidenciou a presença ali de duas linhagens do Sars-CoV-2, A e B. Seria de esperar uma predominância no suposto ponto de origem da cepa A, mais antiga; a presença de ambas sugere que o vírus já circulava amplamente entre seres humanos, com tempo para ganhar mutações vantajosas para parasitar nossas células, entre eles frequentadores de Huanan infectados muito antes em outros locais.

Equipe de resposta a emergências de Wuhan realiza buscas no mercado Huanan - Noel Celis - 11.jan.20/AFP

Com efeito, o primeiro diagnóstico de Covid oficialmente confirmado em Wuhan foi de um contador testado em 1º de dezembro de 2019. Ele morava do outro lado do rio da cidade e não teve contato com o mercado, nem se encontraram parentes e conhecidos seus adoecidos com conexão ao Huanan.

O mercado, assim, pode bem ter sido foco não de origem da Covid, mas de um evento de supercontaminação, frequentado como era por cerca de 10 mil pessoas ao dia. Alguns epidemiologistas acreditam que as primeiras infecções na cidade podem ter surgido meses antes, em setembro ou outubro.

Pequim só admitiu a transmissão do coronavírus entre humanos 50 dias depois do diagnóstico pioneiro, em 20 de janeiro de 2020, quando já se tornava evidente que havia milhares de infectados na cidade. Eles só não apareciam nas estatísticas porque, durante semanas, os critérios para testagem e notificação incluíam contato ou moradia próxima do mercado —um óbvio viés de confirmação para a hipótese de animais intermediários à venda ali.

Há mais indícios a corroborar a explicação de escape laboratorial e seu acobertamento: bases de dados genéticos do IVW com acesso interrompido; advertências, censura e perseguição a médicos que deram o alarme sobre casos de pneumonia a se acumularem nos ambulatórios; prisões de jornalistas e blogueiros que tratavam do surto; destruição de amostras; informações confusas sobre três funcionários do IVW internados em novembro de 2019; bloqueio no acesso de repórteres a uma mina em Yunnan em que trabalhadores haviam contraído pneumonia por coronavírus ao coletar guano na caverna infestada de morcegos.

Ridley e Chan encheram as 430 páginas de seu livro com essas e outras revelações, inclusive sobre o conluio de pesquisadores no Ocidente com pares chineses. Correspondências obtidas por meio de leis de acesso a informação mostram o envolvimento não só de Daszak, mas até de autoridades de saúde americanas do peso de Anthony Fauci, conselheiro médico da Casa Branca em sete governos, e Francis Collins, presidente dos NIH de agosto de 2009 a dezembro de 2021.

Os adversários da hipótese laboratorial, entretanto, têm razão ao ressalvar que são todos indícios circunstanciais, apesar de numerosos. Não se encontrou ainda a arma fumegante no Instituto de Virologia de Wuhan, como um vírus geneticamente tão próximo do Sars-CoV-2 e dotado do sítio de clivagem com furina para figurar como progenitor imediato do agente pandêmico.

Também é verdade, por outro lado, que até hoje se desconhece o animal intermediário entre morcegos e humanos. Permanece igualmente incógnito o local onde o vírus teria feito a baldeação entre espécies no longo caminho entre as cavernas de Yunnan e o mercado Huanan.

A proximidade da feira com o principal instituto de pesquisa de coronavírus na China, em cujos congeladores há milhares de amostras virais tão indisponíveis para auditorias quanto registros em seus computadores, constitui uma coincidência que só não levanta suspeita em quem já se convenceu de que há uma conspiração geopolítica contra a China e a favor dos EUA.

Sem comprovação, contudo, segue sendo uma coincidência. Esse ponto de vista foi defendido com minúcia pelo jornalista Jamie Palmer, que rebate na revista online australiana Quillette, uma a uma, as pistas de Chan e Ridley (agradeço a Álvaro Pereira Júnior pela indicação). Para Palmer, a hipótese do vazamento de laboratório se apoia em um encadeamento improvável de poucos fatos e muitas suposições, à margem de evidências.

Seu argumento principal recorre à famosa navalha de William de Occam (ou Ockham), um princípio de parcimônia que recomenda tomar por provável a hipótese explicativa mais simples para um fenômeno e aí centralizar o esforço de investigação.

É uma defesa convincente e útil, sob muitos aspectos. Ela evidencia que estamos longe de explicar a origem da Covid, o que ajudaria muito a prevenir novas pandemias pelos coronavírus que já nos deram os flagelos Sars, Mers e Sars-CoV-2.

Há outro princípio heurístico, porém, muito aplicável a esse enigma: ausência de evidência não é evidência de ausência. E este, mormente na China, corta dos dois lados.

Viral: the Search for the Origin of Covid-19

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