Cientistas brasileiras inspiram inovação no setor agroindustrial

Presença feminina cresce, mas campo e academia ainda carecem de equidade de gênero

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Alliston Nascimento
Aracaju (SE)

Ainda em cenário de disparidade de gênero entre profissionais, a presença feminina ganha evidência na agroindústria. Na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), 759 dos 2.155 pesquisadores são mulheres (35%).

Em agosto deste ano, a empresa anunciou que 21 de seus cientistas integram o ranking global de 2023 do portal acadêmico Research.com. Há seis mulheres na lista —uma delas é Johanna Döbereiner (1924-2000), uma das mais importantes cientistas do país. A Folha ouviu as outras cinco pesquisadoras citadas pelo levantamento.

Para definir a colocação dos profissionais, são analisados o número de artigos e a quantidade de citações, além de fatores como prêmios, bolsas e demais reconhecimentos concedidos por instituições de pesquisa e agências governamentais. O estudo coletou informações em dezembro de 2022 e considerou 26 áreas em 60 países, com quase 167 mil pesquisadores, sendo 2.000 da área de ciências agronômicas.

Retrato de Ana, uma mulher branca com cabelos lisos e grisalhos penteados e presos em um rabo de cavalo; ela usa óculos de grau, uma jaqueta azul com o logo da Embrapa Sudeste e usa luvas azuis; em um ambiente de fazenda, em uma estrutura semelhante a um estábulo, ela manipula uma seringa e outros instrumentos de laboratório
Ana Carolina Chagas, bióloga, doutora em ciência animal e pesquisadora da Embrapa Pecuária Sudeste - Veronica Schinaider Pereira/Divulgação

"Vejo esse reconhecimento do nosso trabalho como consequência de uma paixão desenfreada pela ciência", diz a médica-veterinária Luciana Regitano, doutora em genética e melhoramento de plantas e pesquisadora da Embrapa Agropecuária.

Sem o objetivo de figurar em listas de pesquisadores de sucesso, Regitano afirma que se dedica à ciência para produzir conhecimento e tecnologias para melhorar a vida das pessoas. "Não há reconhecimento maior do que ver um ex-orientando se destacando na sua carreira ou ver os artigos que escrevemos sendo usados como ponto de partida para novos estudos."

Suas pesquisas analisam o genoma estrutural (DNA) e funcional (RNA, proteínas e elementos reguladores) de bovinos para compreender mecanismos genéticos que contribuem para a produção, a qualidade e a sustentabilidade da carne em climas tropicais, já que grande parte dos estudos globais é conduzida sob as condições climáticas do hemisfério norte.

"Descrevemos genes, marcadores genéticos e processos biológicos que nos ajudam a entender o que faz um bovino ser resistente ao carrapato, aproveitar melhor os alimentos, emitir menos metano ou produzir carne mais macia", exemplifica.

Doutora em agronomia com ênfase em ciência do solo, a engenheira agrônoma Veronica Reis, pesquisadora da Embrapa Agrobiologia, considera fundamental o reconhecimento dos pares por meio de levantamentos como o da Research.com. "Isso representa qualidade da informação e valida um trabalho de pesquisa que pode mudar paradigmas."

Já engenheira agrônoma Mariangela Hungria, doutora em ciência do solo e pesquisadora da Embrapa Soja, destaca a importância de estabelecer contatos com profissionais para além da comunidade científica. "A menção no ranking é muito relevante, mas também é muito significativo chegar em um dia de campo e o agricultor falar: 'É, doutora, conheço seu trabalho'."

Neta de uma professora de ciências, Hungria já sonhava em ser microbiologista aos oito anos, quando se encantava com as histórias contadas pela avó sobre a área. Hoje, no campo da microbiologia do solo, ela estuda processos como a substituição de fertilizantes químicos por biofertilizantes.

Formada na década de 1970, a pesquisadora afirma que, naquela época, mulheres eram minoria no curso de agronomia. "Era o homem do campo, o dono da fazenda, o homem agrônomo, e mulheres eram raridade." Hoje, por outro lado, ela nota um avanço da presença feminina em áreas distintas da agroindústria, do trabalho nas fazendas à condução de startups.

A percepção é corroborada por Regitano, da Embrapa Agropecuária: "Pertenço a uma geração de mulheres que precisavam mostrar que eram tão fortes ou até mais do que os homens para buscar um lugar à meia sombra. Era raríssimo vê-las liderando um grande grupo de pesquisa: no geral, eram sempre membros da equipe que trabalhavam muito e, muitas vezes, nem recebiam créditos".

Para a bióloga Ana Carolina Chagas, doutora em ciência animal e pesquisadora da Embrapa Pecuária Sudeste, os benefícios causados pela diversidade entre os cientistas têm reflexo positivo inclusive na busca de soluções para desafios recentes da agropecuária.

Chagas atua na área de parasitologia veterinária, com foco em alternativas para o controle de animais como carrapatos e vermes. Difíceis de eliminar devido à resistência que criaram aos inseticidas, esses parasitas podem transmitir doenças e impactar negativamente na produção se não forem combatidos.

"Ao atendermos produtores familiares ou dos mais diferentes níveis, sabemos que as mulheres também estão do lado de dentro da porteira, trabalhando diretamente no plantio, na criação, na gestão e na logística da produção. Elas também são clientes da pesquisa agropecuária e merecem ser atendidas por um olhar mais atento a suas realidades", diz a cientista.

Joice Ferreira, bióloga, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental e coordenadora da Rede Amazônia Sustentável, também enfatiza o reconhecimento no ranking da Research.com como fruto da cooperação permanente entre cientistas diversos. Seu trabalho é voltado à produção agrícola que prioriza sustentabilidade socioambiental e conservação da biodiversidade.

"É preciso pensar na conservação do meio ambiente para agora e para as futuras gerações, e isso exige uma visão ampla. Em um espaço dominado por homens, como ainda ocorre em muitos locais, perde-se a profundidade de pensamento. Com mais mulheres à frente das pesquisas agropecuárias, a visão se torna mais abrangente para atacar problemas complexos e solucioná-los", afirma Ferreira, que é doutora em ecologia.

Retrato de Silvia, uma mulher branca com cabelos lisos e loiros na altura do ombro; ela sorri e segura um microfone enquanto fala; ela usa jaqueta bege
Silvia Massruhá, presidente da Embrapa, durante o seminário Agronegócio Sustentável, realizado pela Folha em seu auditório, na região central de SP - Jardiel Carvalho - 21.ago.23/Folhapress

Hoje, todas as cientistas ocupam posições de liderança em setores diferentes da Embrapa e se sentem representadas por Silvia Massruhá, a primeira mulher a assumir a presidência da estatal em 50 anos. Para Massruhá, o marco representa uma oportunidade de valorizar mais o trabalho de outras cientistas.

"É um passo importante da empresa rumo a gestões cada vez mais igualitárias e inclusivas. Vamos nos empenhar muito para que isso aconteça, ampliando as possibilidades de dar visibilidade e reconhecimento à capacidade e ao conhecimento acumulado por tantas mulheres na Embrapa."

Hoje, 32% dos 7.800 funcionários da instituição são mulheres, segundo a empresa. No último ano, a proporção na diretoria executiva passou de 25% para 40%, e a instituição planeja chegar a 60%.

Apesar dos números, a presidente avalia que a representatividade ainda é baixa e menciona a criação do Observatório das Mulheres Rurais do Brasil, recurso que faz parte do Agropensa (Sistema de Inteligência Estratégica da Embrapa), como ação de incentivo à equidade de gênero na estatal.

"Por meio da apresentação visual e interativa de dados, análises, diagnósticos e prognósticos, essa ferramenta pretende fornecer subsídios para o desenvolvimento de estratégias, projetos e programas e para criação ou aprimoramento de políticas públicas em benefício das mulheres que atuam em atividades agropecuárias, florestais e aquícolas", explica.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis

Esta reportagem foi produzida durante o Lab Tereos + Folha - 2º Programa de Jornalismo Especializado em Agroindústria Sustentável

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