Descrição de chapéu inteligência artificial

Projetos tentam transferir mente humana para mundo digital

Ideia é gerar avatar, com base em dados que retratam personalidade, para se comunicar com quem já morreu

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Paris

Era final de 2019 quando Justin Harrison sofreu um acidente de moto em Los Angeles, nos Estados Unidos. Ele sobreviveu. Seis semanas mais tarde, porém, veio a notícia de que sua mãe estava com câncer. Seis semanas após essa descoberta, um amigo dele morreu vítima de um acidente de moto. E, seis semanas depois dessa perda, começou a pandemia de Covid-19.

"Como você pode imaginar, de repente, a morte estava em toda parte do meu rosto", conta Harrison.

Ele trabalhava, naquela época, com a produção de documentários e percebeu que queria registrar a vida da sua mãe antes que pudesse ocorrer uma tragédia –ela morreu em outubro de 2022 por causa do tumor. Mas Harrison não queria somente capturar a história da sua mãe, seu desejo era continuar interagindo com ela de algum modo mesmo que ela morresse.

"Eu procurei se alguém tinha um programa que eu pudesse pegar as histórias dela e as nossas conversas e criar algo digital com o qual eu ainda pudesse me comunicar", continua.

ilustração de uma estátua com metade do rosto com traços humanos e o restante sendo construído por linhas digitais
Catarina Pignato

Harrison, no entanto, não achou nada desse tipo. Foi aí que começou a montar seu próprio projeto, ainda em 2020. Ele entrou em contato com conhecidos que trabalhavam no ramo de tecnologia a fim de entender o que precisava ser feito para tirar a ideia do papel.

Em meio a diferentes possibilidades, uma chamou sua atenção. Era óbvio que seria necessário coletar dados da pessoa que seria simulada, no caso, sua mãe, porém um dos conselhos que recebeu foi de não focar só a quantidade de dados mas também a qualidade. A ideia, então, não seria pegar dados genéricos da personalidade de alguém que deseja criar um avatar digital, mas a interação que ela tem com um indivíduo ou com um grupo pequeno de pessoas.

Como funciona a criação de versões digitais da YOV

  • 1° passo

    Áudios, textos e outros materiais de uma pessoa real são adicionados em um site

  • 2° passo

    O sistema processa essas informações e cria uma pessoa digital baseada nas interações presentes nos materiais

  • 3° passo

    A pessoa que contratou o serviço pode então interagir com a versão digital criada

E foi assim que nasceu a YOV, empresa fundada por Harrison. Atualmente, a companhia conta com cinco funcionários —nenhum deles recebe salário por causa do momento preliminar que o negócio se encontra.

O fundador ainda procura formas de financiar a empreitada, mas não deseja um parceiro comercial que demande um aumento significativo no valor da assinatura do serviço –no momento, é possível utilizar o sistema por três dias gratuitos e então se paga US$ 19,99 (cerca de R$ 100) por mês.

Há 900 pessoas cadastradas no sistema, porém Harrison não revela quantas efitivamente geraram versões digitais de outras pessoas.

Uma hipótese a ser testada

Também nos Estados Unidos, existe a Terasem Movement Foundation, uma organização sem fins lucrativos fundada em 2004 que busca testar se é possível transferir uma consciência humana para o ambiente digital.

A ideia pode ser um tanto estranha a princípio. Bruce Duncan, diretor-executivo do projeto desde 2006, até ri quando a reportagem diz que o objetivo do projeto soa um pouco como ficção científica. "Só um pouco?", pergunta ele depois das risadas.

Duncan explica que, por muito tempo, o trabalho gerava reações de desinteresse por parte da comunidade acadêmica. "Quase ninguém na academia falava sobre isso e, se você falasse com cientistas, eles simplesmente diriam ‘bem, isso é legal e você é louco’ e iriam embora."

Com o tempo, a tecnologia avançou, e o interesse por pesquisas envolvendo inteligência artificial (IA) cresceu. O projeto do Terasem Movement até já foi tema de um artigo publicado no periódico científico International Journal of Machine Consciousness. O texto é assinado por Martine Rothblatt, uma das fundadoras do projeto.

Para atingir o objetivo da iniciativa, existem diferentes etapas. A primeira é coletar dados que retratam a personalidade de alguém. Hoje, cerca de 65 mil pessoas já colocaram diferentes materiais, como áudios e vídeos, no sistema digital da fundação, que só suporta arquivos em inglês. Esses dados são processados e interpretados seguindo o modelo Big Five, método que mensura os cinco traços predominantes na personalidade de alguém.

Agora, nós não podemos dizer que temos uma mente clonada

Bruce Duncan

diretor-executivo

Mas, antes de testar se uma IA pode simular a personalidade de um ser humano, é necessário treiná-la. E é nessa fase que o projeto se encontra por meio de um robô chamado Bina48, que se baseia na personalidade de Bina Rothblatt, a outra fundadora do projeto.

Dados pessoais de Rothblatt foram coletados, e entrevistas bibliográficas foram feitas com ela. Então, essas informações foram incorporadas à IA para treiná-la e aprimorá-la.

Se a IA ficar preparada, o que, nas estimativas de Duncan, pode ocorrer entre 5 e 8 anos, então se passa à próxima etapa: os testes. O plano é que especialistas, como psicólogos, e pessoas comuns tenham contato com a pessoa real que formou o arquivo digital e com a simulação realizada pela IA. Com essas análises, será possível averiguar se realmente existe alguma equivalência entre as duas.

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Registro da robô Bina48 da Terasem Movement Foundation - Terasem Movement Foundation

Caso isso aconteça, Duncan diz acreditar que novas questões devem surgir e, consequentemente, novos estudos. "Eu esperaria que houvesse muitas questões que valem a pena serem perseguidas para refinar, repetir e examinar as condições subjacentes que estão presentes em uma simulação suficientemente boa."

Após isso, quem sabe, será possível transferir a consciência de alguém para computadores que podem operar a personalidade dessa pessoa mesmo se ela já tiver morrido.

Esse plano é de interesse da organização para o futuro, mas o foco agora é aprimorar a IA e aplicar os testes de equivalência nos próximos anos. E, por enquanto, não tem como afirmar se isso dará certo. "Agora, nós não podemos dizer que temos uma mente clonada", resume Duncan.

Como funcionará a criação de versões digitais da Terasem Movement

  • 1° passo

    Áudios, textos e outros materiais de uma das fundadoras do projeto foram coletados

  • 2° passo

    Uma IA está sendo treinada para performar esses dados e simular a pessoa real

  • 3° passo

    Depois de pronta, a IA será testada para averiguar sua eficácia em simular um ser humano

  • 4° passo

    Se obter sucesso, a IA poderá ser usada no futuro para replicar diferentes mentes humanas

É possível?

Vitor Calegaro, professor adjunto do departamento de neuropsiquiatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), estuda o tema de personalidade humana relacionada a traumas e resiliência. Ele explica que, pelo menos hoje, a ideia de uma IA simular totalmente a personalidade de alguém é algo distante de acontecer. Por outro lado, simular padrões focalizados de comportamento de alguém é algo mais factível.

Isso porque a personalidade de alguém é produto de uma interação de sistemas psicofísicos –ou seja, mentais, mas também biológicos.

"Dependendo de como é a genética de uma pessoa, a biologia dela, tudo isso vai mudar um padrão de respostas que compõem as características individuais", explica Calegaro.

Sem contar com essas informações biológicas, como é o caso de computadores, processar completamente o que compõe uma pessoa é improvável.

Além disso, certos traços de uma pessoa não podem ser categorizados completamente por modelos matemáticos. Sexualidade e amor são dois exemplos. Sem essas medidas, não é possível replicar essas características de alguém.

Outro detalhe levantado pelo professor é relacionado a quão ambiciosa é a meta. Por exemplo, se o desejo é simular o estilo de interação de uma pessoa com outra, ou seja, algo mais focalizado, o nível de reprodução tende a ser mais fácil de ser atingido. Agora, se o objetivo é captar a personalidade de alguém em diferentes contextos sociais, alcançar essa meta tende a ser muito mais difícil.

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