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Matemático e filósofo Newton da Costa, criador da lógica paraconsistente, morre aos 94 anos

Ele formulou um tipo de lógica capaz de abarcar as complexidades e incertezas da ciência moderna

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Newton da Costa em praça em frente ao apartamento onde vivia em Florianópolis, em 2016 Caio Cezar - 27.out.16/Folhapress

São Carlos (SP)

Newton Carneiro Affonso da Costa, matemático e filósofo brasileiro que formulou um tipo de lógica capaz de abarcar as complexidades e incertezas da ciência moderna, morreu na noite desta terça-feira (16). Ele era professor-visitante da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e tinha 94 anos.

Nascido em Curitiba, Costa passou os primeiros anos de sua vida acadêmica na UFPR (Universidade Federal do Paraná), onde cursou primeiro engenharia civil e depois matemática, realizando lá ainda seu doutorado.

Nos anos 1960, transferiu-se para a USP, onde acabaria se aposentando, além de lecionar na Unicamp e numa série de instituições da Europa, Estados Unidos e América Latina ao longo da carreira.

Depois de continuar na USP por algum tempo após a aposentadoria, foi para Santa Catarina para escapar da vida complicada na metrópole e para ficar mais perto de 2 dos seus 3 filhos, que viviam em Florianópolis.

Um dos grandes legados de seu trabalho é a chamada lógica paraconsistente. "É um ramo da lógica que lida com situações em que há contradições, o que acontece muito frequentemente, e cada vez mais, na complexidade do mundo real", explicou o matemático Walter Alexandre Carnielli, do Departamento de Filosofia da Unicamp.

Se a lógica clássica, desde a época dos filósofos da Grécia Antiga, considera que as contradições são inválidas, a lógica paraconsistente tenta achar maneiras de chegar a raciocínios válidos mesmo quando contradições estão presentes.

"Imagine uma situação em que você tem informações contraditórias sobre um assunto, ou numa base de dados. A lógica paraconsistente oferece ferramentas para analisar e lidar com essas informações de maneira coerente, sem rejeitá-las completamente. Isso é útil em várias áreas, como inteligência artificial, diagnóstico médico, análise de dados e tomada de decisões em situações complexas, onde a incerteza e a ambiguidade são comuns", resumiu Carnielli. Entre essas situações está, por exemplo, o controle do tráfego aéreo.

Newton da Costa aplicou tais princípios também à compreensão de alguns dos grandes avanços da física moderna, como a mecânica quântica e a teoria da relatividade. As duas áreas mostraram sua validade em inúmeros experimentos, mas não "conversam" direito em si e parecem até contraditórias quando se examina sua base matemática. A coexistência entre as duas fica menos complicada levando em conta os trabalhos do pesquisador paranaense.

Seu legado serve como testemunho do poder transformador da pesquisa interdisciplinar e da importância da ciência brasileira

Walter Alexandre Carnielli

matemático

Em conversa com a Revista Pesquisa Fapesp, publicada em 2008, ele destacou que nunca quis destruir a lógica clássica. "Todo mundo já disse isso, especialmente no começo, quando apresentava minha teoria por aqui. É uma das coisas que mais me deixam amolado. Eu seria um idiota se achasse que a lógica clássica está errada. O que acredito é que ela tem um domínio de aplicações, mas, em certas circunstâncias, não se aplica."

"‘Para’ quer dizer ‘ao lado’", prosseguiu ele na entrevista. "É ‘ao lado de’, ‘complemento de’. Assim como a relatividade geral não destruiu a mecânica newtoniana. Nem a mecânica quântica acabou com a mecânica newtoniana. E elas não existem sem a mecânica newtoniana."

Uma visão mais ampla de Costa sobre o significado filosófico da pesquisa científica aparece em outro de seus projetos, a teoria da quase-verdade.

"Muitas pessoas pensam que a ciência busca a verdade, mas não é isso. Você a busca, mas nunca a atinge", disse ele à Folha, em entrevista publicada em 2016.

"A mecânica clássica de [Isaac] Newton não é verdadeira, pois a mecânica relativística de [Albert] Einstein é mais precisa. Mas muita gente ainda usa a mecânica clássica, sobretudo engenheiros, para fazer aviões e pontes. Como ela funciona bem nesses casos, ela é quase-verdadeira", exemplificou Costa.

O pesquisador contava que boa parte das influências que o levaram à carreira acadêmica vieram de casa. Mencionava a mãe, professora de francês, e duas tias, respectivamente professoras de inglês e de história da música. E o tio Milton Carneiro, professor universitário.

"Ele tinha uma biblioteca impressionante e me incentivou a pensar e a ler filosofia. Quando eu completei 15 anos, ele me chamou para almoçar e, durante a refeição, me perguntou: ‘Newton, você é capaz de provar que existe?’. Eu disse, ‘bom, eu estou aqui, então eu existo’. Ele me respondeu, ‘isso pode ser sonho’. Aí eu digo, ‘penso, logo existo’, e ele, ‘isso mostra que existe pensamento’, e assim foi indo. Então eu percebi que, na verdade, você não pode provar que existe. A existência é uma coisa contingente. Aí começou o meu interesse por filosofia e, depois, pela matemática."

Fã de música clássica do século 19, de escritores franceses como Victor Hugo e dos filósofos René Descartes e Bertrand Russell, ele nunca quis se aposentar de fato, pois dizia ter grande prazer com o ensino e a pesquisa. "Se me tirarem isso, vão me tirar tudo", dizia.

"Seu legado serve como testemunho do poder transformador da pesquisa interdisciplinar e da importância da ciência brasileira, lembrando-nos do impacto duradouro que o pensamento inovador pode ter em nossa compreensão do mundo", afirmou Carnielli.

Edélcio Gonçalves de Souza, professor do Departamento de Filosofia da USP que foi orientando de Costa, lamentou a morte do mentor em comunicado.

"Não é fácil avaliar a estatura intelectual desse homem que foi o nome mais destacado da área de lógica e filosofia em nosso país. Conheci o professor Newton em 1989, no último semestre de minha graduação em filosofia. Tive uma identificação imediata com seus interesses em lógica e filosofia da ciência. Conviver todos esses anos com ele, desfrutar de sua companhia, fez-me entender um pouco mais da vida, do que é a atividade científica, do meu papel como professor e de mim mesmo", declarou.

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