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Foi erro de linguagem grosseiro dizer que Parent in Science 'atrapalha muito', afirma Ricardo Galvão

Segundo presidente do CNPq, ele se referia a outros movimentos que apresentam quadros sem contextualização

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São Paulo

No início deste ano, o principal órgão de apoio à pesquisa científica no Brasil, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) deu um passo em prol da igualdade feminina na ciência ao tornar obrigatória a extensão do prazo de dois anos por gestação ou adoção para avaliação de projetos de bolsistas que são mães.

A extensão foi uma resposta após virem a público pareceres de avaliação de projetos de pesquisa preconceituosos contra mulheres. Neles, a maternidade era citada como justificativa para baixa produção científica.

O presidente do CNPq, Ricardo Galvão, durante audiência no Senado, em Brasília
O físico Ricardo Galvão durante audiência no Senado, em Brasília - Waldemir Barreto - 24.set.19/Agência Senado

Algumas semanas depois do anúncio referente à extensão, Ricardo Galvão, presidente do CNPq, fez um comentário em um evento na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que gerou novas críticas. Na ocasião, ele disse que "[movimentos como] o Parent in Science atrapalham muito [a ciência]". O Parent in Science é uma organização cujo objetivo é buscar maior inclusão e igualdade para pais e mães na ciência.

Em nota divulgada dois dias depois, o órgão afirmou que as palavras "atrapalha muito" foram pinçadas dentro de uma explanação muito mais ampla sobre a questão de desigualdades, não só de gênero como também de raça, regionalismo e profissão".

Na primeira entrevista após o ocorrido, concedida à Folha, o físico afirmou que cometeu um "erro de linguagem grosseiro".

Na entrevista, ele disse ainda que a prioridade na seleção de bolsas é sempre uma questão relativa e que comitês dão prioridade a mulher ou homem, conforme os índices observados em cada área.

Em relação aos dados de bolsistas de produtividade, conhecidas como PQ, há 20 anos a proporção de mulheres contempladas é a mesma [36%]. Mesmo assim, a participação feminina tanto na graduação quanto na pós-graduação cresceu nos últimos anos. A que se deve esse descompasso?
É preciso, em primeiro lugar, cuidado ao avaliar esses dados porque alguns levantamentos não levam em conta as diferenças de áreas. Temos 48 comitês assessores que envolvem várias áreas do conhecimento. Em pelo menos 12 comitês de áreas, já tinham sido implementadas medidas para reduzir a desigualdade.

Agora, quando falamos desse número, de 36%, ele é uma média, porque em algumas áreas, como enfermagem, cerca de 60% das bolsas de produtividade são para mulheres, enquanto em engenharia elétrica é aproximadamente 10% a 15%. Essa desigualdade não é por uma questão de julgamento das bolsas, mas por uma falta da demanda [de mulheres].

Olhando detalhadamente em cada comitê de área, isso tem aumentado. Por exemplo, na última chamada, o comitê da engenharia elétrica, vendo que tem poucas bolsistas mulheres, aumentou o número de projetos aprovados de pesquisadoras para quase 50%.

No início deste ano, o CNPq divulgou uma portaria que prorroga por dois anos o prazo de avaliação das bolsas de pesquisa por adoção ou gestação. Isso foi uma vitória também do Parent in Science. Mas o sr. afirmou que o movimento "acaba atrapalhando muito". Poderia esclarecer o que quis dizer?
Sendo bem claro, usar o termo atrapalhar foi um erro de linguagem grosseiro meu, eu reconheço. O que eu quis dizer com atrapalhar é que alguns movimentos fazem um levantamento, apresentam resultados descontextualizados para a mídia, o que impede uma análise mais detalhada de problemas que são complexos.

Logo depois da minha fala [em um evento na Unicamp, no final de fevereiro], eu mandei uma mensagem para a professora Fernanda [Stanisçuaski, cofundadora do PiS], dizendo que usei a palavra errada, convidando-a para vir ao CNPq, e ela muito graciosamente atendeu.

Eu me coloco aberto para receber todos os grupos que entram em contato com o CNPq, ouvir propostas distintas, avaliar quais podemos implementar.

Quais ações do CNPq para redução de desigualdades e preconceitos podem ocorrer ainda neste ano, não só de gênero, mas de raça/cor?
A primeira ação é como trataremos os pareceristas do CNPq, porque vimos que as regras de como escrever as cartas não estavam muito bem definidas em relação às consequências de alguns pareceres, que são prestadores públicos, então tem um código de ética. Além disso, tenho estimulado a promoção de mulheres nas áreas de STEM [sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática], inclusive com bolsas de iniciação científica.

Agora, em relação à diversidade de raça e regional, essa sempre foi uma preocupação nossa, mas ela não é tão fácil. Na plataforma Lattes, você consegue saber se é homem ou mulher pelo nome, mas nem todos os pesquisadores declaram sua raça. Então, isso prejudica um pouco as avaliações.

Nós estamos criando ações afirmativas específicas, como o lançamento de um edital, com o Ministério de Igualdade Racial, para bolsas de mestrado, doutorado, doutorado sanduíche [no exterior] e pós-doutorado para mulheres negras, indígenas, quilombolas e ciganas também.

E existe algum prazo para fazer o levantamento de informações de pesquisadores negros e indígenas na plataforma Lattes?
Quando assumi a presidência, não existiam ferramentas que permitissem ao público geral acessar dados do sistema do CNPq. Desde o início da minha gestão, já temos o trabalho liderado pela diretora de análise de resultados [a física e professora da UFSC Débora Menezes]. Creio que com a disponibilização desses painéis a questão racial vai melhorar, porque as pessoas se sentirão recompensadas ao informar sua raça/cor, mesmo que ela não seja obrigatória.

Como presidente do CNPq e também pesquisador, o que o sr. acha de avaliar pesquisadores segundo sua produtividade?
A função do CNPq e das agências de fomento é apoiar a pesquisa e promover o desenvolvimento da ciência. Os recursos que recebemos são públicos, mas também são limitados —aí a qualidade é um ponto essencial. A adequação da proposta, o mérito, novos resultados, tudo isso é avaliado na pesquisa.

Isso posto, temos que ter uma comparação para colocar ordem de prioridade, e isso é feito pelo comitê de área, depois de aprovado o projeto, que escolhe quais bolsas vão priorizar —e essa prioridade é sempre relativa.

Nesse ponto entra a questão de reduzir a desigualdade de gênero, racial e regional. Então, se tem um homem e uma mulher que têm praticamente o mesmo nível de avaliação, dá-se prioridade à mulher, principalmente nos comitês assessores em que as mulheres são minoria. Mas, por exemplo, se isso acontece no comitê de farmácia, onde 95% das mulheres já têm bolsa de produtividade, aí, na realidade, tem que ser um homem.

E assim vamos progredindo cada vez mais nesses critérios.

Já que o sr. mencionou a subjetividade, temos muitos dados de estudos nacionais e internacionais demonstrando que a produtividade das mulheres cai após a maternidade. Esses dados são levados em conta pelo CNPq para avaliar quais mudanças devem ser feitas nos editais para reduzir esse efeito?
Essa queda acontece não só na ciência, é no trabalho comum também. Isso está sendo levado em consideração no CNPq há algum tempo, mas infelizmente não em todos os comitês assessores. A primeira coisa que fizemos foi tornar obrigatório [o aumento do prazo].

Além disso, estamos introduzindo um outro fator que vai reduzir muito esse problema de queda de produtividade, que é a lista dos cinco trabalhos mais relevantes no período. Imagine que uma mulher apresenta, em um período de cinco anos, uma queda no número de trabalhos publicados após a maternidade, mas ela teve três trabalhos muito importantes no período. Então, o comitê vai dar mais atenção para esse trabalho do que para a numerologia.

Ao assumir a presidência do CNPq, o sr. encontrou um cenário de desmantelamento de políticas públicas no órgão ou dificuldade no fomento à pesquisa?
Na verdade, desde 2022 nós viemos com a equipe de transição [do governo Lula] trabalhando com as medidas para renovar o apoio à ciência e tecnologia, e a primeira, que foi logo implementada, foi interditar o congelamento de 53% do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNCDT), executada pelo governo Bolsonaro.

Tivemos um trabalho muito grande, muito bem articulado pelo governo, para recuperar esse recurso. Então, íamos ter, no ano passado, R$ 5,3 bilhões e passamos para R$ 10,6 bi. Para ser honesto, essa diminuição de recursos para a ciência e tecnologia foi até de antes do governo Bolsonaro, teve início já no segundo ano do governo Temer, e a recuperação está bem lenta, é claro, porque tem uma questão orçamentária, mas eu encontrei um solo preparado para plantar as sementes corretas.


RAIO-X

Ricardo Galvão, 76

Formado em engenharia na Universidade Federal Fluminense, com título de mestre em engenharia elétrica pela Unicamp e doutorado em física de plasmas pelo MIT, nos EUA, é professor titular do Instituto de Física da USP. Foi diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e presidente da Sociedade Brasileira de Física (de 2013 a 2016). Dirigiu o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de 2016 a 2019. Hoje, preside o CNPq.

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