Programa de R$ 1 bilhão para repatriar cientistas é criticado por pesquisadores

Apesar de a essência do projeto ser vista como positiva, momento causou indignação; presidente do CNPq diz que não será retirada verba da pesquisa nacional

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O programa do governo Lula (PT) para repatriar pesquisadores tem atraído críticas, ao mesmo tempo em que é visto como interessante, em sua essência. Cientistas que trabalham no Brasil apontam que o dinheiro direcionado à iniciativa não ajuda a evoluir as condições da ciência no país e a corrigir problemas da pesquisa nacional.

O programa Conhecimento Brasil prevê tanto a fixação de cientistas em instituições de pesquisa ou empresas quanto verba para a criação de laboratórios. A ideia é atrair cerca de mil pessoas, segundo o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

O montante agregado do programa —R$ 1 bilhão, para serem gastos de 4 a 5 anos—, anunciado à Folha por Ricardo Galvão, presidente do CNPq, gerou reclamações no meio científico. Em nova entrevista, ele afirmou que as queixas eram esperadas e que os críticos estão desconsiderando outros projetos lançados pelo governo.

0
Pesquisador em laboratório de museu da USP - Jardiel Carvalho - 5.dez.22/Folhapress

Os pesquisadores ouvidos pela reportagem não são totalmente contrários à repatriação de mentes e consideram a ideia importante. Mas apontam que limitações e problemas do fazer científico no Brasil passam por gargalos constantemente não tratados, como sucateamento de laboratórios de pesquisa.

"Eu acho que um programa de repatriação é desejável", afirma Carlos Hotta, professor do Instituto de Química da USP, que fez parte de sua formação no exterior e voltou ao Brasil. "Mas esse programa proposto não é bom. Ele tem o direito de existir, deveria existir, o problema é a quantidade de dinheiro, a forma e o momento."

O timing diz respeito às greves de professores de universidades e institutos federais. Servidores já carregam há algum tempo a insatisfação com relação a salários, investimentos nas instituições e condições de pesquisa. O ministro da Educação, Camilo Santana, é crítico à greve, a qual considera desnecessária e prejudicial.

Daí a contraposição entre a oferta para os possíveis pesquisadores repatriados e o que tem sido oferecido a quem trabalha hoje no território brasileiro.

Para Hotta, se tivessem anunciado o R$ 1 bilhão e outros "R$ 5 bilhões para pesquisadores do país, certamente não ia ter uma reclamação tão grande".

Pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Luiz Eduardo Del Bem é outro a criticar o programa e, em suas redes sociais, comparou os benefícios oferecidos pela iniciativa aos ofertados a docentes com doutorado de universidades federais. Segundo ele, as bolsas e condições oferecidas temporariamente a quem regressar podem superar a situação dos professores com dedicação exclusiva nas federais.

Para Del Bem, que também fez parte da sua formação fora do país, o programa entra no contexto de um país que "optou por um caminho de subfinanciamento crônico de ciência".

"É até um pouco delicado. Como que a gente vai criticar um projeto querendo pagar bem outros pesquisadores?", afirma Hotta, que ressalta, ao mesmo tempo, a falta de programas semelhantes para manutenção de pesquisadores. "Às vezes, estamos tentando trazer gente sem conter a saída."

Marcus Oliveira, pesquisador da UFRJ que recentemente publicou uma carta na Nature criticando cortes em bolsas, é mais um a criticar o projeto, apesar de também afirmar que, em princípio, não vê problemas com a ideia de repatriar cientistas.

"Se o CNPQ e o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação de fato estão preocupados em repatriar cientistas, trazer de volta cérebros, eu não vejo outra saída a não ser instituir uma política sólida e consistente de financiamento de pesquisa", diz Oliveira.

Além disso, ele questiona o objetivo do programa, afirmando que as condições oferecidas não são comparáveis a realidades de pesquisa de pesquisadores consolidados no exterior.

A crítica da economista Monica De Bolle, professora da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, vai na mesma linha. "São pessoas que estabeleceram suas redes profissionais fora do país, têm suas atividades e vidas constituídas fora, não vão querer voltar. E, ao mesmo tempo, o que temos no Brasil, é precisamente pesquisadores e pesquisadoras de excelência que não têm nenhum financiamento e têm condições extremamente precárias de pesquisa."

Para a economista, em resumo, trata-se de uma má alocação de recursos e uma política não ajustada às necessidades reais de pesquisa no Brasil. "E eu fico me perguntando: acabado o tempo de projeto com o investimento, o que será feito desses pesquisadores?"

Cristina Caldas, diretora de ciência do Instituto Serrapilheira, afirma que o movimento de repatriação é benéfico para o país, mas também deve vir acompanhado de estratégias para tornar a pesquisa nacional mais dinâmica.

Segundo ela, os pesquisadores —não só os que chegarem— precisam de mais flexibilidade e agilidade em relação aos recursos disponíveis. "Tem que diminuir a carga burocrática e administrativa do cientista. É uma demanda recorrente", diz.

Pesquisa fora do país não necessariamente é fácil

Para quem está fora do país, porém, a realidade não necessariamente é tão mais fácil, guardadas as devidas proporções de cada local e cada contexto. Há quem tenha saído momentaneamente pela falta de oportunidades dentro do Brasil, como foi o caso de Gabriela Sobral, paleontóloga do Museu de História Natural de Stuttgart.

Já com o doutorado e sem conseguir encontrar posições no país, Sobral chegou perto de abandonar a carreira científica.

Seu trabalho atual na Alemanha é uma posição temporária, o que traz a insegurança de vagas temporárias. "Não tenho cidadania europeia, meu marido também não. Nosso visto está conectado ao nosso contrato de trabalho. Acabou o contrato, acabou o visto", afirma. "Viver na corda bamba, de projeto em projeto, é muito instável."

O programa de repatriação não trata da estabilidade depois dos 4 ou 5 anos, mas serviria para recolocar os pesquisadores no contexto científico brasileiro, avalia Sobral.

A paleontóloga diz concordar com algumas críticas, como a de que o programa não apresenta uma perspectiva do depois, mas que não se pode tratar a questão como um espantalho. "Essa coisa de qual que é o pior problema para ser resolvido primeiro, entende? Parece até que tem uma fila. 'Prioridade é o pessoal que está dentro. Ah, não quis ir para fora? Que fique fora.' Isso é uma agressão muito forte. Não tem fila."

Governo federal diz que esperava críticas

Galvão afirma que já eram esperadas críticas, mas que muitos dos que estão falando contra não estão considerando os projetos estratégicos já lançados pelo órgão para ciência nacional.

"São duas coisas distintas, não é correto olhar as duas demandas como equivalentes. Não haverá alocação do orçamento do CNPq, este valor é de um fundo, o FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], aprovado no último ano, para gasto em cinco anos [num primeiro momento, o órgão informou uma duração de três anos]", disse ele, em nova entrevista à Folha após a repercussão negativa do anúncio.

0
Ricardo Galvão, presidente do CNPq, anunciou que governo terá programa para repatriar cientistas - Lucas Lacaz Ruiz - 31.ago.18/Folhapress

O FNDCT é responsável por estabelecer os fundos setoriais do Orçamento federal. A expectativa é que R$ 400 milhões sejam liberados neste ano e o restante, até 2026.

O dinheiro, de acordo com o CNPq, será investido ao longo de cinco anos pelo conselho e pela agência Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) em duas chamadas lançadas simultaneamente. Por enquanto não há, porém, data para o lançamento dessas chamadas, afirmou o CNPq.

Conforme estimativa preliminar do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), ao qual o órgão é vinculado, há hoje 35 mil pesquisadores brasileiros com mestrado e doutorado vivendo fora do país.

"Vários países do mundo tiveram programas de repatriação semelhantes, a Alemanha, a Coreia do Sul, a Índia e a Argentina. No caso da Argentina, é um país com problemas semelhantes ao Brasil, que tem um problema robusto de atrair os pesquisadores no exterior para melhorar a ciência do próprio país", diz.

O físico também destaca o reajuste das bolsas de mestrado e doutorado aprovada no último ano, após 15 anos sem reajuste, e também a ampliação, neste ano, de 500 bolsas de doutorado sanduíche e pós-doutorado lançada pelo governo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.