Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Descrição de chapéu Mente

O que o 'moonwalk' de Michael Jackson ensina sobre o tempo

O presente, na verdade, é o passado das coisas que nos surgem à mente

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O tempo que conhecemos não é uma propriedade da realidade.

"Se eu perguntar se dois eventos — um na Terra e outro na galáxia Próxima b estão acontecendo ao mesmo tempo —, a resposta correta será: esta questão não faz sentido, porque não existe nada que possa ser definido como ao mesmo tempo no universo. A ideia de um presente do universo é desprovida de sentido", escreveu Carlo Rovelli.

Imagem captada pelo telescópio James Webb mostra a galáxia Cartwheel e galáxias vizinhas - Space Telescope Science Institut/ESA/Webb/AFP

A ausência de direção fixa para a flecha do tempo leva à noção de que presente, passado e futuro existem simultaneamente, como pressuposto pelo Dr. Manhattan ("o futuro está escrito em pedra") ou, ainda, que o fluxo dos acontecimentos até cria um antes e um depois, mas estes não podem ser generalizados para além dos limites da realidade local. É a ideia de que o mundo difere do universo.

Assim como todas as outras espécies, somos predispostos a lidar com o mundo, onde a passagem do tempo serve de intuição elementar e a identificação dos elementos responsáveis pela sua direção dá origem à mais fundamental das dinâmicas cognitivas: a causalidade.

Na escala dos séculos, essa transição leva ao aumento da complexidade civilizatória, enquanto produz desordem na esfera do universo inteiro. A cultura organiza, a realidade cosmológica destrói.

O tempo é tão complexo quanto fascinante, basta ver que Newton "inventou a modernidade", como diz o linguista Noam Chomsky, concebendo o universo como um grande relógio. Essa ideia levou à máxima de que o cérebro humano também teria um oscilador central, o que só foi refutado recentemente.

Nossas percepções temporais são geradas a partir de diversos osciladores semi-independentes, que diferem em relação à escala em que operam e à relação que estabelecem com o tempo do relógio.

Um dos mais básicos é a distância percorrida pelos impulsos elétricos, em cadeias de neurônios envolvidos no processamento sensorial. Outros surgem de mudanças na composição do sangue. Há os que acompanham neuro-hormônios, como a melatonina, além dos híbridos que são majoritários.

Os ritmos criados vão desde aqueles que definem a energia individual, nas diferentes fases da vida, até os que geram os registros mais fugazes (0,2 segundo) e imprecisos.

Mesmo nesses casos, a unidade perceptiva demanda cerca de meio segundo até a tomada de consciência. Ou seja, o tempo de exposição pode ser mais curto que o tempo para processá-lo.

Durante esse intervalo, o cérebro integra as diferentes dimensões do estímulo, bem como diferentes estímulos, gerando efeitos maravilhosos, como a capacidade de sentir toques simultâneos nos pés e nas mãos chegarem juntos à consciência, a despeito daqueles percorrerem um trajeto maior.

A conclusão decorrente não poderia ser mais poderosa: aquilo que chamamos de presente, na verdade, é o passado das coisas que nos surgem à mente —um passado longo, de cerca de meio segundo, tempo suficiente para a luz percorrer quase metade do trajeto daqui até a Lua.

Esse é o princípio por trás daqueles experimentos de neurociências que conseguem acertar o que uma pessoa irá decidir alguns instantes antes disso acontecer. Eu mesmo tenho uns desses.

O momento do passado que se diz presente abre-se para um ciclo de duração um pouco maior, caracterizado pela manutenção de certas informações em estado de disponibilidade imediata, o que chamamos de memória de trabalho. A partir dela, algumas experiências são promovidas a um estágio ainda mais longo de armazenamento, podendo nos acompanhar por toda a vida, o que envolve a atividade de genes e, assim, materialidade. A memória literalmente transforma a pessoa.

Presente e passado estabelecem relações harmônicas de continuidade retrospectiva, como Michael Jackson fazendo o "moonwalk", em que parece estar andando para frente enquanto anda para trás.

O que está desacoplado desse circuito é o futuro. Como fazemos para intui-lo? Que lições esse entendimento traz para as nossas vidas?

Futuro iminente e futuro mínimo

Michael Jackson dança para trás e, justamente por isso, seus olhos ficam o tempo todo voltados para frente. A cada flexão do pé e deslocamento de seu centro de gravidade, ele se antecipa por inteiro, de modo que cada postura sua seja também uma maneira de entrar na próxima com total precisão.

Esse processo de antecipação envolve um sem-fim de estimativas rápidas e inconscientes sobre o palco e seu próprio corpo, que contam muito para aquela impressão de que o sujeito tem um dom.

Prever as coisas de maneira continuada é fundamental à sobrevivência. A rocha prestes a rolar, a fera prestes a atacar, o carro que ameaça colidir são algumas das condições que enfrentamos a partir desse senso de iminência que se antecipa às palavras e outras formas de representação. É o futuro como foco primário dos seres vivos que navegam o ambiente de maneira internamente dirigida.

Esse, naturalmente, não é único sentido de futuro em jogo. Pelo contrário, para que a sequência de comportamentos de inspiração imediata gere interesse, é preciso um plano. Deste, emerge um sentido de futuro que ganha contornos pelo direcionamento dos investimentos intencionais do artista.

Planos são intenções que se prolongam, o que significa que são memórias, ainda que muito mais proativas que as variantes comumente discutidas nos manuais de neurociências e psicologia.

Essas memórias para frente ou "prospectivas" servem de substrato para todo tipo de atividade organizada. São elas que falham quando deixamos de comprar pó de café no supermercado, ou quando invadimos o horário do rodízio inadvertidamente. O primeiro tipo representa uma falha intencional no domínio dos eventos (ir ao supermercado), o segundo, no domínio do tempo.

É mais difícil manter intenções neste do que naquele domínio, ao passo que, em ambos os casos, existe a chance da falha ter mais a ver com falta de motivação que com memória intencional.

Chamei o futuro das estimativas imediatas de iminente e o futuro orientado pela memória de intenções de mínimo.

O futuro estendido

As rotinas intencionais têm duração variável. Em nossas vidas, elas frequentemente são entrecortadas por outras, bem como por distrações e mudanças de objetivo. Propósitos são omitidos e retornam após décadas. Isso mostra que existe um sentido pessoal de futuro que é mais extenso e menos linear que esse que é preconizado pela memória prospectiva e seus blocos intencionais.

Lembramos o que aconteceu em dado momento e lembramos algo mais antigo ainda, que o causou, e assim inferimos a existência da distensão temporal. Aplicando o mesmo princípio ao que ainda está por vir, construímos futuros de extensão indefinida.

O truque para fazer isso chama-se inversão atencional: abandonamos provisoriamente o fluxo vindo de fora, em prol da atenção internalizada, a qual permite usarmos a consciência como plataforma narrativa. É a substituição provisória da atenção ao que se abre pela atenção ao que se constrói.

A organização mental desse tipo de futuro estendido costuma acontecer em camadas. Primeiro, vêm os aspectos mais gerais, depois, a contextualização específica e, finalmente, os eventos particulares.

O processo é idêntico ao utilizado para resgatar memórias pessoais. Igualmente semelhantes são as áreas cerebrais utilizadas, o que nos levou a deduzir que esse tipo de futuro estendido também é construído a partir do passado, mais especificamente da reedição de fragmentos autobiográficos e a inserção deles em molduras narrativas preestabelecidas.

Boa parte da criatividade manifesta-se de maneira semelhante, como reinvenção de memórias.

Esse processo só funciona direito quando as representações de futuro são conectadas às experiências não verbais que as causariam e fossem parte da realidade compartilhada: tanto quanto representar o futuro, importa emular seus impactos afetivos, em uma verdadeira viagem mental através do tempo (MTT), que é o termo criado para denominar essa manifestação da imaginação.

Chamei as representações virtualizadas a partir dessa forma de imaginação de futuro estendido.

A relação entre futuro imediato e estendido

O futuro estendido costuma ser construído na mente em função de propósitos de longo prazo. A ideia é que uma sequência de rotinas intencionais nos leve até ele.

Conforme essas vão se encadeando, os caminhos possíveis se desdobram, assim como as decisões a serem tomadas, o que torna a manutenção do alinhamento intencional um desafio cada vez maior.

Isso leva a um sentido de inteligência prática ou otimização comportamental como habilidade de manter a orientação de longo prazo, passo a passo. Ou seja, a viagem mental através do tempo não apenas encadeia intenções como cria as hierarquias de propósitos de valor existencial.

Acontece que decidir bem custa tempo e energia. Não raramente, um propósito que se abre inocentemente para o futuro imediato desdobra-se em várias demandas, ligadas a pré-requisitos que não havíamos considerado, que podem definir um caminho totalmente alternativo para nossas vidas.

Daí segue a conclusão, aparentemente paradoxal, que o foco no futuro estendido recomenda parcimônia na otimização de intenções proximais, apesar de serem os blocos constituintes dos propósitos de longo prazo. Essa é a primeira lição trazida pelo mergulho no tema do futuro mental. Otimização de verdade é maximizar o tempo que nos resta.

Psicopatologia do futuro

De calendários a HDs, o mundo é usado como uma grande extensão do hipocampo, o que talvez ajude a explicar a obsessão com os registros do passado nas disciplinas clínicas da mente.

O caso das demências é emblemático. A ideia que circula, bem como a vasta maioria dos estudos que são produzidos, dá ênfase ao declínio da memória episódica, seguida pela despersonalização.

Acontece que a qualidade de vida decai menos pelo declínio das lembranças e dificuldades de aprendizado e mais pelo risco de incêndio que surge toda vez que o paciente decide fazer um chá. Ou seja, é o desmantelo da relação intencional com o futuro que gera risco existencial e leva à interdição das rotinas que davam sentido ao dia a dia, antes da doença.

"A memória episódica é usada como o sintoma-chave na emergência da doença e permanece como principal critério diagnóstico. O esquecimento de intenções também é um sinal do início da doença. Porém, seu mapeamento ainda permanece raro na prática clínica", escrevem em artigo Grégory Lecouvey e coautores.

Estudos pioneiros sobre os sinais precoces da doença mostram que as falhas intencionais podem acontecer até uma década antes da demência se instalar, reforçando fato de que essas não são apenas doenças de passado, como de futuro. É isso que as torna incapacitantes.

É desse raciocínio que surge o segundo ponto prático que vale incorporar: há uma tendência disseminada de subvalorização da capacidade de se orientar ao futuro, que contrasta com seu papel fundamental na inteligência fluida e na adaptabilidade ao dia a dia.

Falhas intencionais significam perda de aderência ao mundo. É preciso dar atenção a isso e repensar raciocínios clínicos, testes de inteligência e muito mais.

Algo semelhante se repete na esfera do futuro estendido. A literatura de inspiração microeconômica é profícua em modelos utilitários e vieses heurísticos, ao passo que o braço psicológico do tema traz pilhas de estudos sobre gratificação e miopia para o futuro. O que costuma ser deixado de fora é o papel central da criatividade nas tomadas de decisão.

Apenas nos últimos anos começaram a sair estudos sistemáticos sobre a afantasia, a dificuldade de imaginar cenários hipotéticos descrita por Galton no século 19 e basicamente ignorada desde então. Pessoas que sofrem dessa condição não conseguem imaginar futuros hipotéticos e, por isso, têm sérios problemas decisórios, ainda que ajam como maximizadores utilitários em jogos microeconômicos e não sofram de nenhuma daquelas condições neurológicas mais famosas, como as falhas nos marcadores somáticos de Antonio Damasio.

Disso decorre o derradeiro ponto de interesse: muito mais importante que avaliar opções preestabelecidas é a habilidade de inventar cenários de alto valor agregado em situações abertas. Tomada de decisão é menos sobre análise e mais sobre criatividade. É isso que torna o processamento cognitivo do futuro estendido tão importante. Toda autenticidade é criativa.

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