Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Uma nova era quântica vem aí

Confirmação de previsões e tecnologias baseadas em princípios da mecânica quântica são sinais de entrada no zeitgeist

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Existe um consenso de que nosso cérebro é o que há de mais belo e misterioso no universo.

É a bola da vez. Damos destaque entusiasmado às falsas promessas da internet do pensamento e tomamos erroneamente as neurociências como pilar central da inteligência artificial.

Vídeo de software de reconhecimento facial em uso na sede de empresa de inteligência artificial em Pequim, na China - Gilles Sabrié - 10.mai.18/The New York Times

Parece que estamos apaixonados pelas expectativas um pouco infladas dessa minha área de concentração. Só assim para entender como pessoas inteligentes e bem-formadas permitem-se dizer coisas como "meu cérebro sentiu", "meu cérebro sabia" ou "meu cérebro decidiu", mesmo compreendendo que quem sentiu, sabia e decidiu é o eu, uma instância que emerge do encontro do cérebro com o mundo, parcela subtraída do raciocínio como se fosse desimportante.

Nem sempre foi assim. Há três a quatro gerações, a psicanálise ganhava o Ocidente, mas o que movia mesmo a opinião pública era a física. Então, o átomo é que era o tal, belo e extravagante.

A noção de que o universo não funciona de acordo com as leis da mecânica newtoniana, mas como previsto pela teoria da relatividade geral, havia sido demonstrada por Arthur Eddington e Frank Dyson, num experimento conduzido em Sobral, no Ceará, em 1919.

Numa espécie de inversão radical de orientação, a mecânica quântica avançava com modelos e noções surpreendentes até para Einstein, que aliás ganhou o Nobel em 1921 por causa do efeito fotoelétrico, parte do arcabouço central da mecânica quântica.

A história dessa área é de previsões contraintuitivas em série. A observação cria realidades, ao passo que as coisas podem estar em mais de um lugar simultaneamente. O pano para manga para repensar tudo o que existe era imenso e levou a invenções do calibre do laser (1960), bem como a quebras de paradigmas em áreas como a filosofia e a biologia, em que Schrödinger criou precedentes com seu tratamento da origem e do funcionamento da vida (1944).

A mecânica quântica era o imaginário sob a carcaça matemática do real. Sua popularização foi impulsionada pelo pessoal da new age a partir de 1975, que enxergou na alegoria de partículas que também são ondas uma via para dar lastro e profundidade cósmica às suas práticas e estratégias comerciais.

Não tardaram a surgir os primeiros gurus quânticos, além, é claro, das primeiras teorias quânticas da consciência, cujo maior mistério seria avançar o tema sem matemática alguma.

Isso tudo naturalmente levou à exaustão da opinião pública. Os vieses surgidos da apropriação pela psicologia do senso comum se converteram em descrédito sobre a capacidade desse ramo da física de produzir valor para quem habita a faixa dos bilhões de átomos, enquanto as questões que outrora inspiravam grandes debates viraram tabu, como conta o físico Sean Carroll.

A minha hipótese é que isso está começando a mudar.

A confirmação de previsões centrais da mecânica quântica, a identificação de fenômenos quânticos em condições ambientais e, principalmente, o desenvolvimento de tecnologias baseadas em seus princípios sugerem que uma nova onda quântica esteja se formando e que pode vir a ser ainda maior que a original. Para o bem e para o mal. Essa é a hipótese do quantum de tudo.

Paparazzi fotografa o Quântico em Glasgow

A mecânica quântica tem pouco mais de cem anos de história e, junto com a relatividade geral, representa um dos dois pilares para a compreensão do que são matéria e energia.

Entre os seus princípios mais famosos encontra-se o de que, em nível atômico e subatômico, a indeterminação dá o tom.

As coisas não têm estados definidos. Elas não são apenas partícula ou energia, mas funções de onda que, em algumas situações, adequam-se mais à primeira noção e, em outras, à segunda.

As funções de onda pressupõem desfechos não determinísticos. Um elétron tem certa chance de ter spin para cima ou para baixo. Enquanto esse spin não é aferido, o elétron de fato possui um pouco de ambos.

Ou seja, não é só que não sabemos qual dos dois é o seu spin definitivo, mas que esse conhecimento surge do colapso da função de onda produzido pelo registro do spin, que faz as coisas voltarem a funcionar de maneira clássica. Aqui há uma explicação em 3 minutos.

Tal como as coisas podem existir nesse estado de superposição descrito acima, elas também podem estar emaranhadas umas às outras. Por exemplo, registrar o spin do elétron A afeta o registro do spin do elétron B, mesmo que este esteja do outro lado da galáxia.

Esses princípios estão muito bem estabelecidos do ponto de vista matemático. O que vem mudando é a possibilidade de registrá-los experimentalmente e de gerar aplicações, inclusive fora da física.

A noção de que partículas funcionam como ondas foi introduzida por Schrödinger em 1926. Apesar de se tratar de uma das equações mais importante do século 20, o debate em relação ao seu papel descritivo de propriedades fundamentais da realidade nunca cessou.

Apenas em 2015, um grupo de físicos da Universidade de Queensland (Austrália) conseguiu produzir evidências relevantes a favor da ontologia da função de onda, o que também serviu para explicitar o colapso da mesma, elevando ainda mais a importância da incerteza como propriedade das coisas e da mecânica quântica como melhor substituto possível da mecânica clássica.

Em 2010, foram apresentadas as primeiras evidências de que o emaranhamento quântico se aplique a objetos macroscópicos, mas foi apenas em 2015 que o fenômeno foi cabalmente demonstrado em termos experimentais. Foram necessários outros quatro anos para que fosse possível registrar uma foto do mesmo.

No ano seguinte, 15 trilhões de átomos foram emaranhados e um quinto estado da matéria (condensado de Bose-Einstein) foi demonstrado. Este condensado é um estado em que diversos átomos passam a funcionar como uma espécie de superátomo, o que permite o registro de fenômenos quânticos macroscópicos.

Também em 2010, surgiu a primeira demonstração consistente do efeito de Casimir, uma força macroscópica que atua no vácuo, contradizendo a noção de que nada surge do nada ("Ex nihilo nihil fit"), a qual Parmênides elevou ao papel de verdade universal há 2.500 anos. Nos últimos anos, começaram a aparecer demonstrações práticas do efeito aplicado à nanotecnologia.

O aspecto mais relevante desses experimentos não é provar o que supostamente estava sendo questionado, mas promover a transição ao domínio da ciência baseada em evidências.

Isto muda radicalmente a relação com a opinião pública, agências de fomento, investidores e cientistas de outras áreas, abrindo caminho para um novo círculo virtuoso da mecânica quântica, que é a tese apresentada aqui.

Por exemplo, um dos fenômenos quânticos mais conhecidos é o tunelamento, que é a capacidade de uma partícula atravessar barreiras impenetráveis, prevista por Oskar Klein (1929). Apenas em 2019 surgiram evidências claras de que se trata de algo real e apenas em 2020 foi possível medir o tempo tomado por uma forma específica de tunelamento.

Do mesmo modo, o teletransporte na escala infraliliputiana, por assim dizer, ganhou fama a partir de um estudo de Einstein, Podolsky e Rosen (1935), voltando a ser assunto de interesse na década de 1990, em função da publicação de um estudo teórico importante. Foram necessários outros 24 anos para que fosse possível teletransportar uma partícula de luz até um satélite, o que é essencial para a construção de redes de comunicação quântica.

Em 2019, o quilograma tornou-se quântico, enquanto a Nasa ativava seu relógio atômico do espaço profundo. Isso foi dois anos antes do surgimento do primeiro gerador quântico de números aleatórios, que já vem sendo usado em jogos e projetos da Web 3.0.

Vida quântica

Um dos principais indicativos da influência de um tipo de conhecimento científico na sociedade como um todo é a sua incorporação em outras áreas. Freud desenvolveu seu modelo psíquico como uma espécie de economia, influenciado pelos economistas ingleses da segunda metade do século 19, tal como Yoshua Bengio, Geoffrey Hinton e Yann LeCun inventaram o deep learning inspirados pela teoria conexionista de funcionamento do cérebro, de Patricia Churchland. A relevância percebida de uma área afim tende a espelhar a sua popularidade mais ampla em determinado momento histórico.

Nos anos 1940, Schrödinger deitou as bases para a biologia quântica, começando por uma nova definição da vida como aquilo que consegue evitar a queda do equilíbrio termodinâmico pela manutenção homeostática da entropia negativa que caracteriza os sistemas abertos.

Entropia é o grau de desorganização de um sistema; um caminho sem volta para o universo, que vai mudando de configuração como a casa arrumada que dá lugar à bagunça. A vida, por sua vez, manifesta-se na direção contrária, especialmente em termos genéticos.

Essa visão influenciou a descoberta do DNA e muitos outros avanços, ao passo que a biologia quântica como área autônoma de investigação esfriou um tanto, só vindo a ganhar novo fôlego recentemente. A questão de fundo é o ceticismo sobre a existência de processos quânticos à temperatura ambiente, a qual leva ao colapso da função de onda de maneira quase instantânea.

Atualmente, o ceticismo dominante está sendo desafiado por evidências experimentais.

Por exemplo, quando uma planta capta um fóton de luz, passa a enfrentar o desafio de evitar que se dissipe. Como faz isso? Uma hipótese é de que a transmissão energética seja otimizada pela coerência quântica, conforme cientistas da Universidade Colúmbia alegam ter demonstrado em 2018.

Vale notar que essa descoberta não levou a um consenso sobre a importância da coerência quântica nas plantas. Por isso, a descoberta de que a bactéria Chlorobium tepidum usa princípios quânticos para proteger seus processos energéticos dos efeitos deletérios do oxigênio gerou estardalhaço quando publicado; neste caso, parece claro que têm papel fundamental.

Algo parecido aconteceu quando pesquisadores alemães demonstraram que pássaros migratórios usam o campo magnético da Terra como GPS, com a ajuda do emaranhamento quântico, em proteínas de suas retinas (2018). Esta conclusão foi corroborada em 2021.

Atualmente, diversos outros fenômenos biológicos estão sendo repensados sob a mesma inspiração, incluindo a olfação e certos processos neurológicos.

Um estudo seminal de 2022 ampliou o leque de temas caros à biologia, em que explicações quânticas ganham terreno, ao indicar que mutações podem emergir no DNA em função do tunelamento quântico no par de nucleotídeos guanina-citosina (G-C).

Como escreveu Seth Lloyd (MIT), "a natureza é uma grande nanotecnóloga" —uma nanotecnóloga quântica, lê-se nas entrelinhas.

Quantum de tudo, tudo mesmo

A hipótese de que a mecânica quântica esteja na caldeira do zeitgeist da próxima década abrange mais do que as provas experimentais recentes de seus modelos teóricos, a popularização da tese de que tem papel importante na biologia e o crescimento do interesse geral trazido por isso tudo.

Outra linha poderosa de evidências de que estejamos caminhando nesta direção é a febre gerada pela computação quântica, que vem movimentando as Big Techs e os fundos de investimento.

Este será o tema do próximo artigo desta série. Clique no + do topo da página para não perder. Até lá.

Agradeço ao professor doutor Paulo Artaxo pela leitura atenta e pelas orientações e a Hélio Schwartsman pela identificação do tema e pelo diálogo de mais de um ano sobre o mesmo.

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