Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Pessoas sem religião devem ultrapassar católicos e protestantes no Brasil

Perda de relevância espiritual e descompasso com tendências hegemônicas influenciam declínio de religiões no Ocidente

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Em meu último artigo, apresentei a tese de que existe um elo entre o moralismo estridente que vem dando o tom aos debates político-ideológicos e o declínio das religiões no Ocidente. O risco de uma derrocada, ainda pouco discutido no Brasil, é percebido pelas autoridades religiosas dos diferentes países, as quais veem crescer a concorrência pelos fiéis, enquanto dízimo e frequência per capita caem.

Isso impulsiona ainda mais o mergulho das lideranças do segmento na política, o que acelera a secularização, já que promove a exposição de práticas tradicionalmente resguardadas e rebaixa a importância da espiritualidade no combo oferecido.

Apoiadores evangélicos de Jair Bolsonaro em evento de campanha em Brasília - Adriano Machado - 28.out.22/Reuters

O aumento da competitividade leva ao radicalismo como estratégia de diferenciação, em compasso com a realpolitik, em que a concentração de posições moderadas impele movimentos para as pontas, que crescem até o rechaço do eleitorado, levando então ao recrudescimento do centrismo e assim por diante.

Acontece que o pragmatismo político secular possui bem mais espaço para se desdizer e se reposicionar que o religioso, que a cada refluxo do conservadorismo na política perde um pouco de espaço na vida íntima da população.

A ascensão dos sem religião ocorre de maneira acelerada e já aparece nos dados da World Value Survey. Dos 46 países visitados na mais recente pesquisa do grupo, 43 haviam se tornado menos religiosos (período 2007-2019), sendo que os poucos que divergiram o fizeram sob condições muito específicas, como é o caso da Índia, onde o hinduísmo serve de esteio político ao populismo étnico do Partido do Povo Indiano, de Narendra Modi, e a Alemanha, que recebeu milhões de imigrantes muçulmanos.

O crescimento dos não afiliados e ateus nos Estados Unidos jogou por terra a tese do excepcionalismo religioso americano, que servia de contraponto à relação inversa entre progresso material e religiosidade no Ocidente e mesmo fora deste.

Esse fenômeno é menos induzido pela perda de religiosidade que pela dificuldade de captação de fiéis a cada nova geração, tal como expresso pelo fato de que existem mais jovens sem religião em São Paulo e no Rio de Janeiro que católicos ou evangélicos.

Mas, afinal, por que as pessoas estão se tornando menos religiosas no Ocidente?

Declínio do protagonismo moral das grandes religiões

Sociedades organizam-se com graus crescentes de complexidade. Enquanto são pequenas e todo o mundo se conhece, o controle do comportamento antissocial pode ser feito diretamente. Porém, o aumento da complexidade criado pela multiplicação dos elos e pelo fortalecimento das relações estimula o comportamento parasitário, cuja inibição é prejudicada pela nova configuração.

Os deuses moralizantes, típicos das religiões abraâmicas, teriam surgido durante a transição dos pequenos agrupamentos humanos para as estruturas organizacionais complexas, baseadas em estoque, acúmulo e recompensas adiadas. Eles estariam, assim, na base da civilização, servindo de controle aos impulsos antissociais por meio de dispositivos atemporais, como o par onisciência divina/juízo final.

Essa narrativa está parcialmente errada. Estudos recentes, possibilitados pelo desenvolvimento da Seshat, base de dados maciça e descentralizada, mostram que os grandes deuses moralizantes não são tanto causa quanto consequência das sociedades complexas, cujos códigos morais lhes precede. Por outro lado, essas autoridades invisíveis de fato contribuíram para a evolução dos códigos de conduta, de um lado atendendo aos anseios das pessoas e, de outro, facilitando a sua manipulação.

Esse paradigma é cada vez menos sustentável. Hoje em dia, a religiosidade está inversamente associada ao comportamento moral. Em países mais religiosos, pessoas e instituições são mais punitivas, em linha com o esperado; porém, corrupção, criminalidade e senso de fragilidade moral têm recorrência muito maior que nos menos religiosos. Grandes deuses tanto não organizaram moralmente as primeiras sociedades quanto não vêm contribuindo para isso na atualidade.

As evidências mostram que existe uma relação inversa entre o que se observa nas cadeias, onde a religião serve de suporte moral, e o que se observa em escala nacional ou global, onde serve de licença moral. Religiosos legitimam a explosão de ônibus cheio de crianças, forçam pré-adolescentes estupradas a ter o bebê e tratam orientação sexual como doença mental, propondo a sua cura a partir de falsos paradigmas psicológicos.

A rápida elevação do nível educacional observada nas últimas décadas, aliada à dinâmica de circulação de informações pela internet, escancara essa realidade, em consonância com a revisão crítica do papel das religiões ao longo da história, que se tornou regra na indústria cultural e aos poucos vem chegando às escolas. A isto, ainda se soma a exposição pública de incontáveis escândalos, com ênfase nos sexuais.

O resultado observado em todo o Ocidente é o fortalecimento do chamado novo iluminismo, que nada mais é que a reafirmação de princípios e valores pelo que têm de positivo para o sujeito e a sociedade, sem qualquer alusão a deuses ou doutrinas.

Perda de relevância existencial

A fé em deus é o caminho mais fácil para se lidar com a morte como fim de toda existência, uma ideia difícil de encarar. Regiões suscetíveis a muitas catástrofes naturais, guerras ou quaisquer outros fatores que ameacem a sobrevivência tendem a ser mais religiosas que seu entorno, tal como se dá na esfera pessoal, em função de doenças de prognóstico sombrio.

Uma das principais marcas do progresso é a redução da taxa de óbito em conflitos e catástrofes. Isso se mantém mesmo com as recentes guerras e a Covid-19. Outra é o aumento da expectativa de vida dos adultos pela evolução da medicina e pela ampliação da cobertura médica, que é paralela à redução da mortalidade infantil, primariamente ditada pelo saneamento básico e pelo combate à fome.

A elevação da expectativa de vida, nos moldes em que está se dando, reduz a insegurança existencial, desincentivando a religiosidade inspirada pela angústia da finitude, durante a vida adulta. Isso, por sua vez, torna os pais menos empenhados na doutrinação de seus filhos, que assim crescem em ambientes cada vez menos religiosos —o fator crítico para a tendência em curso.

Perda de relevância espiritual

As experiências religiosas são dinâmicas mentais com duas dimensões principais.

Uma conecta crenças —construções verbais motivadas— a angústias e esperanças, que são manifestações não verbais, com coloridos afetivos específicos. Desse modo, forma-se a base afetivo-cognitiva da fé, cuja implementação cerebral envolve as regiões do córtex pré-frontal ligadas à cognição social, como a porção ventromedial, o que é condizente com o fato de que as crenças se sustentam mais na credibilidade gozada no grupo que no escrutínio dos juízos particulares.

A segunda dimensão abarca o senso de presença, relação com o divino, experiências de revelação e aquilo que em inglês é conhecido como "awe-full moments" (momentos de admiração misteriosa, em tradução livre). Esta compõe a base espiritual da fé, a qual é bem menos dependente das representações verbo-ideativas.

A implementação cerebral dessa base espiritualizada é bastante ligada à "default mode", um conjunto de estruturas cerebrais mais ativadas quando deixamos as coisas rolar no plano mental que quando nos esforçamos intelectualmente. A espiritualidade é muito mais antiga que a fé baseada em crenças organizadas, estando presente em 100% dos povos caçadores-coletores, muitos dos quais ignoram grandes deuses.

A independência desses circuitos explica por que muitos fiéis praticantes declaram nunca ter tido experiências espirituais e vice-versa. Ela também apresenta o caminho para se compreender por que pacientes esquizofrênicos costumam ter experiências místicas, enquanto a recíproca evidentemente não é verdadeira.

Por fim, essa autonomia funcional externaliza diferenças na condução dos anseios espirituais no Ocidente e no Oriente, onde as práticas de conexão espiritual são menos dependentes de credos e igrejas. A popularização da ioga nos anos 1960, em função da relação entre os Beatles e Maharishi Mahesh Yogi, seguida pela da meditação, nos ashrams voltados para ocidentais, introduziu a ideia de que é possível se dedicar apenas às experiências de revelação, o que explodiu em popularidade com o mindfulness.

Um passo além foi dado pela disseminação de gadgets para práticas meditativas em casa, as quais se tornaram quase tão populares quanto ginástica durante a pandemia, período no qual os aplicativos do segmento estiveram entre os mais baixados do mundo.

A satisfação de anseios espirituais por meio dessas rotinas representa um enorme contraponto às religiões no Ocidente. Uma tendência ainda não mapeada, mas certamente pertinente, é a dos pais que se preocupam muito mais com as vivências espirituais dos seus filhos no sentido meditativo que religioso do termo, reforçando o efeito gerado pela redução do esforço doutrinário por razões existenciais.

Rechaço cognitivo-comportamental

Parece incrível, mas, até a década de 1970, o conceito de qualidade de vida inexistia. Desde então, se espalhou como fogo, tornando-se a peça-chave dos modelos de felicidade e realização no Brasil e em todo o Ocidente. Qualidade de vida não é só mais uma maneira de se referir à felicidade, mas um conceito marcado pela premissa de que esta emerge da combinação de boa saúde, segurança financeira e relações interpessoais satisfatórias. Não se trata de uma noção acolhedora para poetas e filósofos existenciais.

Do mesmo modo, a ideia de que devemos nos orientar pela busca da qualidade de vida é ruim para as religiões moralizantes, muito ligadas à contenção dos impulsos hedônicos, os quais estimulam as experimentações sensoriais desimpedidas e o rechaço às hierarquias baseadas na tradição.

O movimento que vem redefinindo a relação entre os sexos nos campos da profissão, da sociabilidade e da família choca-se com o patriarcado abraâmico, cujos dogmas são muito mais restritivos para as mulheres que para os homens, enquanto o orgulho negro questiona as feições caucasianas das representações populares de Jesus Cristo, cuja origem moura foi solenemente ignorada pelos europeus que dele se apropriaram.

Isso explica por que, nos Estados Unidos, os negros estão abandonando o cristianismo mais rapidamente que os brancos e as mulheres mais rapidamente que os homens. Esses dados são particularmente preocupantes para as lideranças religiosas, já que essas são justamente as subpopulações mais representativas e devotas entre os afiliados.

O estímulo religioso à procriação, importante para a formação da próxima geração de fiéis, vem sendo refutado pelo princípio da alocação planejada de recursos, o qual tem levado à queda da natalidade no mundo todo.

Pautas como a da recriminação do sexo por prazer e da proibição do aborto, apesar de apoiadas por muitos, tanto colidem com o crescente movimento feminista quanto estão na contramão dos interesses dos casais heterossexuais, cada vez menos dispostos a dedicar a totalidade de suas vidas à criação dos filhos.

A queda da presença em igrejas foi acelerada pela pandemia, em conjunção com o rechaço ao trabalho estritamente presencial, tido como mais enfadonho. O "quiet quitting" é a contrapartida econômica ao abandono das igrejas pela geração Z. A consequência, em ambos os casos, é medida em multidões.

Será que as grandes religiões irão desaparecer do Ocidente?

Ressalvas morais, perda de relevância existencial e espiritual, além de descompasso cognitivo-comportamental em relação a tendências hegemônicas são as principais razões para o declínio das religiões no Ocidente, no meu ponto de vista.

Acredito que não tardará para que os sem religião ultrapassem católicos e protestantes no Brasil; arriscaria 30 anos para isso acontecer. Muito antes, os efeitos dessa virada irão se fazer sentir.

Isso não significa que as grandes religiões irão desaparecer do Brasil —país que tem na fé uma de suas marcas registradas— ou mesmo de países como o Uruguai, onde o crescimento dos sem religião tem sido bem mais forte. O esperado é que essas instituições percam parte de sua relevância para sistemas alternativos de crenças e práticas espirituais ou que simplesmente atravessem um período de importância rebaixada, como foram os anos 1960, em comparação com as décadas de 1950 e 1970.

Tudo depende das catástrofes que nos esperam.

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