Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Viver mais ou melhor? Veja resultados inéditos de um amplo estudo nacional

Valorização do tempo de vida muda de acordo com a faixa etária; idosos preferem qualidade a anos adicionais

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Quase todo o mundo quer viver mais e melhor. Mas, entre mais ou melhor, o que preferem os brasileiros? Essa pergunta norteou a condução de um experimento científico inédito no país, cujos resultados apresento em primeira mão neste artigo.

O estudo foi feito usando uma plataforma digital desenvolvida para estudar o comportamento humano e registrar medidas fisiológicas. Mil seiscentos e oitenta e duas pessoas, de 18 a 77 anos (média de 39,5 anos), participaram. A distribuição seguiu os critérios do IBGE para renda e sexo, e a condução esteve a cargo do time de neurociências da Locomotiva, sob a minha supervisão. Os dados foram coletados em agosto, e as análises foram finalizadas nas últimas semanas.

Idosos em praça em Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo - Zanone Fraissat - 20.out.21/Folhapress

Quarenta e três por cento das pessoas tomam o tempo de vida como prioridade, sendo que 24% desses o fazem com extrema convicção. Cinquenta e sete por cento priorizam qualidade de vida, sendo que 33% o fazem com extrema convicção.

Cinquenta e oito por cento dos que preferem viver mais são homens. A preferência por prolongar a vida é predominante entre os menos escolarizados; 53% daqueles que cursaram até o fundamental completo optam por mais tempo. Destes, 64% dizem-se extremamente convictos dessa opção. Em contraste, menos da metade das pessoas que se formaram na faculdade prefere mais tempo a mais qualidade de vida.

As pessoas que se identificam como muito ricas priorizam tempo, enquanto as mais pobres priorizam qualidade de vida. O instrumento utilizado é autodeclaratório e foca a percepção de riqueza e não a renda, na linha de estudos internacionais similares.

Mulheres dominam o grupo da qualidade, assim como são maioria entre os que dizem ter grande convicção de que essa importa mais que a extensão da vida.

Saúde e tempo para si são os valores que mais se destacam entre os que priorizam qualidade. A importância desses valores aumenta linearmente com a convicção decisória. Já no grupo dos que priorizam a duração, Deus e família são os destaques.

A valorização do tempo de vida muda de acordo com a faixa etária. Ela começa baixa, cresce de maneira quase linear, atingindo seu maior valor entre adultos de idade média (30-60 anos), e então decai linearmente. A queda é mais acentuada que a subida. Ou seja, idosos querem, acima de tudo, qualidade de vida e não mais tempo.

Perfis convergentes, mentalidades específicas

A descoberta mais abrangente que fizemos é que a valorização da qualidade de vida muda com a idade. Ela começa alta, decresce com o passar dos anos e volta a subir entre os mais velhos. Isso indica que a gente sofre mudanças de mentalidade ao longo dos anos, que afetam essa percepção de natureza existencial. Além disso, os dados mostram que a mudança é particularmente acentuada na transição para a terceira idade.

Jovens, na média, encaram a realidade a partir de um platô de vitalidade intrínseca. O desconto do futuro é alto e a percepção da finitude, distante. Logo, qualidade de vida sobrepõe-se ao seu prolongamento.

Conforme os anos vão passando, conciliar trabalho, família e vida social revela-se difícil. A falta de dinheiro pressiona, enquanto a percepção de que a janela para realizar os projetos pessoais mais ambiciosos está se fechando torna-se preponderante. As pessoas lamentam a falta de tempo: para si, para os outros, para ir atrás de seus sonhos.

Tensões cronificam-se, depressão e ansiedade contaminam o dia a dia e as mortes por doenças determinadas pelo estilo de vida passam a fazer parte do cotidiano, entre esses adultos que preferem tempo a qualidade.

O estresse crônico como rotina muitas vezes leva a estados-limite, que servem de mola propulsora para uma ampla revisão de propósitos, na qual a qualidade de vida é transformada em estratégia de sobrevivência. Essa revisão marca a passagem à terceira idade e explica por que a satisfação tende a crescer nesta fase. A curva de valorização da qualidade de vida sobrepõe-se à da felicidade, com ponto de mínima na meia-idade.

Outra descoberta importante do estudo é que os mais ricos aspiram mais por tempo. Isso possivelmente reflete a porosidade desse perfil aos discursos tecnofuturistas da chamada sociedade da longevidade, que representam o envelhecimento como condição a ser curada e o prolongamento da vida como a principal conquista da nossa era.

Ricos brasileiros, assim como americanos e europeus, estão muito entusiasmados com a possibilidade de que as tecnologias médicas dos próximos anos estendam suas vidas o suficiente para que cheguem a um platô no qual novas descobertas entrarão em campo, permitindo que vivam até os 150 anos ou mais.

Idosos querem qualidade, enquanto a ciência quer entregar quantidade

A expectativa de vida cresceu em torno de 1 ano a cada 4 anos, durante os últimos 40 anos, nos países mais industrializados e ainda mais no Brasil, onde passou de 62,5 para 76,6 anos (1980 a 2019).

A principal razão para esse aumento é a redução da mortalidade infantil, fator muitas vezes mal-interpretado: não é que os quinquagenários da década de 1970 tivessem expectativa de deixar este plano nos primeiros anos da seguinte, mas que a média etária de toda a população ao morrer, incluindo vários bebês, era de 62,5.

Esse mesmo equívoco norteia a percepção geral sobre a vida na Antiguidade, tratada como um período em que passar dos 30 era coisa rara. Se fosse o caso, o poeta Hesíodo não teria escrito, no século VII a.C., que o homem deveria se casar com cerca de 30 anos —idade mínima para que um jovem assumisse um cargo político de maior importância em Roma. Ali, o cônsul Valério Corvino viveu até os 100, Terentia, viúva de Marco Túlio Cícero, até os 103 anos, enquanto Clódia viveu até os 115 (conheça mais).

J. Montagu analisou milênios de registros de óbitos e concluiu que as pessoas que chegam à vida adulta e nela não tomam parte em guerras ou enfrentam pandemias tendem a atingir os 70 anos de idade. Segundo ele, a expectativa de vida dos adultos de 1.000 a.C. era apenas 1 ano menor que a do período 1850-1949, período em que as mortes no parto e as no campo de batalha davam o tom.

Isso não significa que os sexagenários de hoje tenham à frente um horizonte temporal semelhante aos de 100 anos atrás. Pelo contrário, os investimentos em saúde das últimas décadas, fortemente direcionados ao prolongamento da vida, têm gerado resultados.

Acontece que esses resultados são acompanhados de uma pegadinha: a qualidade de vida tende a cair em muitos casos, em contraste com o que os idosos desse estudo que você está conhecendo em primeira mão querem e com diversos outros.

Uma hipótese para isso, consonante com os dados históricos apresentados, é que as tentativas de elevar a expectativa máxima de vida, tanto em termos individuais quanto populacionais, são acompanhadas por desafios clínicos imensos, criados pelo fato de que nunca houve pressão seletiva sobre os fatores moleculares que determinam esse limiar.

Independentemente da validade desse raciocínio, fato é que não dá para injetar os anos extras no meio da vida; eles obrigatoriamente devem vir ao fim, o que faz com que a expectativa de vida suba mais rapidamente do que a expectativa de vida com saúde.

J. Nemitz conduziu um amplo estudo sobre o prolongamento da vida, usando a satisfação agregada, ano a ano. De acordo com ela, o aumento da expectativa de vida dos idosos entre 1985 e 2011 reduziu a qualidade da experiência nos cinco anos finais de vida das pessoas, aumentando a proporção do tempo vivido de maneira infeliz.

Pessoas de idade avançada, geralmente acometidas por diversas comorbidades, passam mais tempo que nunca entre a vida e a morte, dado que evoluímos muito na capacidade de mantê-las assim.

Um estudo publicado na Lancet indica que, se continuarmos nesse caminho, teremos, até 2060, um crescimento de 87% nas mortes sob severa dor causada por múltiplas condições incapacitantes. Quase metade de todas as mortes do mundo terão esse perfil, com um detalhe: elas não irão se distribuir de maneira equânime, mas se concentrar nos países de renda baixa e média, nos quais a prevenção de doenças é incipiente.

Essa questão possui grande importância para o desenvolvimento de políticas públicas e mesmo para a alocação dos esforços familiares, pois o foco maciço no prolongamento da vida reduz o valor percebido das medidas para a elevação da qualidade de vida dos idosos, as quais tendem a estar mais alinhadas às suas aspirações, além de terem função preventiva.

É muito difícil se conectar à ideia da morte na nossa cultura. Somos cercados por dispositivos para evitá-la, o que fazemos tanto quanto possível. Sem dúvida, é um equívoco, mas isso pouco importa. A consciência da finitude pode ser implacável.

Acontece que o afã para negociar com a morte muitas vezes não parte do sujeito que dela se aproxima nem está alinhado aos seus valores. Sempre tem alguém bem-intencionado para decidir em nome do idoso que trocaria em uma boa seis meses de UTI por uma semana em casa, com seus gatos. A percepção desse cenário levou o famoso médico americano E. Emanuel a declarar: "Acho esse desespero maníaco para estender a vida equivocado e potencialmente destrutivo".

Se existe uma sabedoria que vem com o tempo é a que leva à revalorização da qualidade de vida, conforme a velhice avança. Ela é uma forma de celebração da finitude, que favorece os relacionamentos amenos com a morte. Otimismo tanto prolonga a vida quanto facilita a morte.

O contrário pode ser dito dos martírios impostos pelo prolongamento artificial dos últimos meses da vida de pessoas idosas, muitas vezes em franca contradição com aquilo que escolheriam fazer. Não há situação em que o "trade-off" entre extensão e qualidade seja mais desfavorável.

Precisamos respeitar o desejo de quem só quer viver se for para ser feliz; esta não é a conclusão mais direta do estudo conduzido, mas é a mais importante.

Para mais estudos originais, clique no + no topo da página.

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