Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

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Anderson França

Se você pensa que cancelamento é água

Costumo dizer que o lado progressista da força não precisa de Bolsonaro dando tiro na gente, a gente se mata sozinho

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Alessandra Negrini.

Sendo sincero, não acompanho. Sei que ela foi a um bloco de carnaval e usou sua imagem e influência para jogar luz nas questões indígenas neste fim de semana. Tu sabe que tem índio entrando na Justiça pra reaver terra, tem missionário sendo enviado pra converter índio, tem ações de governo que violam reservas indígenas, e ela, atriz, mulher branca, classe média, usou toda influência que tem pra endossar uma luta.

E foi a caráter, que é o que atores fazem.

Vestem a persona.

O que a internet fez?

Outro protesto, maior, politicamente correto, com foco em bater no governo e ajudar os indígenas.
 
Não.

Bateram na Negrini. Que estava com a Sônia Guajajara, do PSOL, ao lado. Sônia, que pintou Negrini. Se fosse Felipe Neto vestindo Negrini de índio, ninguém ia ser cancelado. Felipe pode tudo.

Alessandra Negrini com indigenas no desfile oficial do Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta - Zanone Fraissat/Folhapress

Mas o próprio Felipe, Deus da Internet, disse, do alto do monte, que esse negócio de cancelamento não tá bom não.

Tá todo mundo cancelando todo mundo. Pergunto: todo mundo, quem?

O IBGElcio, instituto de pesquisas do Elcio, que também trabalha no ramo de salgados pra festas, em Engenho de Dentro, afirma que 99% dos canceladores nasceram de 2000 pra cá. E o outro 1% está vivendo o fenômeno da adolescência estendida. Ou seja, tem gente até de 1956 aí nesse meio.

As redes sociais se tornaram grandes SACs. E os canceladores vão nesse caminho.

As pessoas não são mais agentes ou espectadoras da realidade, são CLIENTES. Num tempo em que likes, e não a reflexão, definem a qualidade de um conteúdo, quem produz conteúdo faz o que dá pra agradar o consumidor, que paga com clique e share.

Virou um mercado, estrategicamente montado. Antes, uma pessoa precisava ter experiência para se pronunciar. Hoje, basta um TikTok, vrau: temos um novo especialista.

Ontem, portanto, foi o dia de cancelar Negrini. Os clientes, em seus sofás, confortáveis em seus moletons, com mil abas abertas no computador, militando em uma, e vendo nova coleção da Farm nas outras, acharam ruim a atriz que, segundo diz a certidão, tem 49 anos, encenar esse papel ridículo e racista.

Povo delira. Negrini não vale o copo de caldo de cana debaixo de uma passarela em Duque de Caxias que tu toma, mas tu tá fazendo o quê?

A gente é o que faz, não o que tuita.

Fora que cancelamento só favorece o cancelado.

Taí Anitta, primogênita das canceladas, mais rica e residente nos istêites que nunca.

O cancelar é uma evolução do lacrar. A geração lacração é mãe da geração tombamento, avó da geração cancelamento.

A lacração tem salto no ar e um sopro de glitter. O tombamento é nós tudo lacrando no ar juntos. Um clipe do Vittar. No cancelamento não futebol arte. Tamo cuspindo um na cara do outro, apenas. Quem cospe mais, ganha.

No cancelômetro, só neste ano, Yuri Marçal, o BBB quase todo, menos o Babu (acho, se não deu merda até a publicação dessa coluna), Roberto Alvim (merecidamente), as meninas do "Mamilos", a Negrini e, se você for ao Twitter agora, vai achar uns cem.

Cancelam por mimo. Nem é pela utopia semiótica ideal da esquerda ciranda, que acreditava que um dia todos os seres humanos seriam mini Fridas. Porque a esquerda quer que todo mundo seja puro, seja santo, enquanto a direita não se importa com ninguém, só me dá esse voto aí, e tá tudo certo.

Mas os canceladores o fazem por mimo mesmo. Pra ter uns likes também, surfar. Não apontam pra corrigir e fortalecer luta. Bagulho é fuder o emocional e a história do outro, sob o manto da justiça.

Movimentos construídos nos morros, nas favelas, com gente boa, de luta, pensante, estão sendo quase que criminalmente apropriados pelos que passam a porra do dia num Twitter fazendo zero nadas.

Por trás das ondas coletivas de cancelamento estão apenas uns adolescentes que não se sentem responsáveis pelo que dizem, tampouco obrigados a fazer algo para mudar o mundo.

É o grau máximo do homo-digitalis: o inútil com voz.

Sobrou até pro Cacique de Ramos. Na onda de ataques a Negrini, algum muleke piranhíssimo solta uma trolada e disse que o Cacique era racista, porque tem um índio como símbolo. Foi preciso o Luiz Simas vir a público explicar a ORIGEM do Cacique.

A lista feita no Diário Oficial de BH pelo prefeito Kalil me soa mais como conquista de consumidor, como hipocrisia, do que como consciência.

Dizer pras pessoas não se “vestirem de mulher” ou levantar diversos pontos até relevantes para reflexão, e isso não ser acompanhado de EDUCAÇÃO CONTINUADA SOBRE DIVERSIDADE E MINORIAS no restante do ano, funciona pra quem?

Pros clientes. Pro vendedor. Mas educar, não educa.

Ando cansado de sermos, nós mesmos, progressistas, uma geração um tanto hipócrita.

Costumo dizer que o lado progressista da força não precisa de Bolsonaro dando tiro na gente, a gente se mata sozinho. Em todo caso, a turma tá conseguindo algo que os evangélicos não conseguiram: fuder o Carnaval.

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